sexta-feira, 28 de maio de 2021

O Eu Superior, Você Inferior!

O 'Eu Superior, Você Inferior' é disparado o maior obstáculo para escolhas sábias.

É a versão do 'Eu Ético, O Outro Não', minha conhecida da época em que discutia conflitos de interesse com mais afinco, e usual pouco alcance. Daquela época, tenho texto abaixo:

O cérebro ético na Medicina (o eu ético - o outro não)

Estudos em neurociência e psicologia sugerem que toda pessoa pode ser um pouco mais influenciável do que costuma pensar que seja. E não é surpreendente que médicos pensem que conflitos de interesses não os afetam pessoalmente, apenas aos outros.

Na avaliação de autores de diretrizes clínicas citada previamente (Choudhry et al., 2002), quando perguntaram se existia a possibilidade do relacionamento afetar recomendações, apenas 7% disse que sim - considerando suas próprias recomendações - mas praticamente 1/5 respondeu que o colega poderia ser influenciado. Vários são os trabalhos onde este resultado se repete. Reforça um paradoxo atual da civilização ocidental: cada um de nós, individualmente ou em grupos organizados, tem a crença de estar muito acima de tudo que aí está. Ninguém aceita, ninguém aguenta mais, nenhum de nós pactua com o mar de lama. O problema é que, ao mesmo tempo, o resultado de todos nós juntos é precisamente tudo o que aí está, estamos muito aquém da somatória das nossas auto-imagens individuais ou corporativas (Blum, 1994; Sandel, 2005; Wojciszke, 2005; Bocian e Wojciszke, 2014).

Se é compreensível que a maioria de nós veja a si mesmo como pessoa ética que sob hipótese alguma colocaria sua objetividade a venda, isso atrapalha, e muito, a busca por soluções.

Ocorre o mesmo na discussão sobre escolhas médicas racionais. Todos acham que fazem certo e o problema são os outros. Não foram raros os envolvidos com a Choosing Wisely que eram leões ao atacar práticas alheias, mas se chatearam quando coisas que defendiam ou por eles praticadas foram colocadas na berlinda.


Não precisamos nem de leões (visão inculpadora) nem de auto-preservação. Mentes científicas devem se moldar com a variação do conhecimento, e não querer que o conhecimento se ajuste a suas visões de mundo ou ao mercado em que atuam. Quando há incerteza acima da aceitável, devem simplesmente aceitar. Devem saber ainda que é possível defender práticas e realizá-las até, sem promoter o que a Ciência não consegue demonstrar. Mas aí está nosso verdadeiro gargalo. Somos muito pouco capazes, todos nós. Identificamos os outros pisando na bola ou exagerando, mas muito menos frequentemente nós próprios.

Percebo também por recentes discussões que acompanhei envolvendo pessoas que admiro por conhecerem bioestatística e MBE (todos mais do que eu, inclusive). A partir de uma postagem pública de um deles, sobre interpretação de um tema bastante controverso, outros levantaram as controversas em fóruns que não incluía o autor original, e o tom mais recorrente foi o da sua desqualificação, mais do que da sua interpretação aquela. Ficou escancarada a dificuldade de discussões abertas, francas, em bom tom e construtivas - embora individualmente sempre achemos que são os outros que comprometem. Eu não sou diferente! Prevaleceu, mais uma vez, o 'Eu Superior, Você Inferior', a ponto de ofuscar o verdadeiro debate. Simplesmente nós não discutimos o que nos ameaça, mesmo que ilusoriamente. 

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