segunda-feira, 12 de abril de 2021

Hype na setor e a desafiadora Saúde Baseada em Humildade

Hype na Saúde: Nesta História, Sempre Alguém é Afagado. E Gosta.

Na posição de afagados, raramente conseguimos dizer não ou freiar movimento pernicioso, a partir de posicionamento que seria, justamente, mais do que estratégico. Remete ao conceito de Saúde Baseada em Humildade, a ser discutido mais adiante no texto.

Hype na Saúde é problema antigo que parece ter se amplificado nas últimas décadas.

Há livros recentes inteiramente dedicados ao tema:





















Um de seus braços contemporâneos está no jornalismo. À medida em que o endereço IP e o clique do mouse de cada usuário podem ser fácil e constantemente rastreados, criou-se ambiente onde as notícias não são mais apenas o que os jornalistas fazem; são também o que o público quer que sejam. Título jornalístico agora é um teaser, recurso publicitário usado em campanhas e lançamento de produtos. Mas não quero hoje aqui explorar esta perspectiva...

Com a COVID-19, alguns hypes caricaturais surgiram no Brasil e, pela insistência neles por setores diversos, ganharam visibilidade cada vez maior no curso da epidemia nacionalmente. Com a evidente politização, mesmo a transformação de idéias incertas hipervalorizadas (quadro inicial) em intervenções que derradeiramente falharam em robustos ensaios clínicos (situação atual) não modificou posturas. Mas também não quero explorar esta perspectiva, com a hipótese de que as raízes disto tudo estão muito além do "tratamento precoce", de seus defensores e daqueles que monotematicamente o condenam, fechando um ciclo vicioso de enorme promoção de debate fútil e nada transformador, que está fazendo muitas pessoas mais neutras perderem curiosidade científica, termo naturalmente redundante.  

Ao criticarem o "tratamento precoce", muitos se colocam do lado da Ciência. Lembraram agora este trecho que tenho anotado, de autor que infelizmente não consegui resgatar:

Cada um de nós, individualmente ou em grupos organizados, tem a crença de estar muito acima de tudo que aí está. Ninguém aceita, ninguém aguenta mais, nenhum de nós pactua com o mar de lama. O problema é que, ao mesmo tempo, o resultado de todos nós juntos é precisamente tudo o que aí está, estamos muito aquém da somatória das nossas auto-imagens individuais e, principalmente, de nossos grupos.

Minha hipótese principal é que somos TODOS responsáveis diretos ou indiretos por cultura Hype na Saúde! Vejamos exemplos fora dos holofotes:

Plasma na COVID-19 nunca ganhou visibilidade além das mensagens de vários hospitais solicitando doadores para "salvar vidas" e pessoas elogiando a iniciativa. Com o meu não foi diferente: 

 

Quando saiu essa postagem, em agosto do ano passado, tentei movimento interno na tentativa de interrompê-la ou reposicioná-la:

---------- Forwarded message ---------
De: Guilherme Brauner Barcellos 
Date: qui., 13 de ago. de 2020 às 14:27
Subject: 
To: xxxxxxxxx

Caros Xxxxxx e Xxxxxxx

Há um assunto que me preocupa bastante na atual fase que é literacia científica. Os desafios são muitos, é um trabalho de formiguinha, não temos controle direto sobre muitas coisas. Mas temos sobre algumas:

Vcs já viram nossa mais recente postagem em redes sociais sobre Plasma & CODID?

Como hospital universitário, acadêmico, quando não temos elementos concretos para festejar vitórias finais, mas estamos na luta com pesquisa, devemos saber festejar a luta, a trajetória em busca de respostas. 

Nossa posição é tão tendenciosa ao Plasma, por vezes afirmando benefício, que, se eu fosse paciente ou familiar, pouco informado, e não caísse no sorteio de quem receberá a intervenção, ficaria desesperado. Acho que devemos conversar com quem está fazendo e calibrar expectativas. 

Um abraço, Guilherme Barcellos 

O debate imediato avançou um pouco...

---------- Forwarded message ---------
De: Guilherme Brauner Barcello
Date: dom., 16 de ago. de 2020 às 08:29
Subject: Re:
To: xxxxxxxxx

A abordagem suscita uma série de consequências ruins, a serem avaliadas através dos comentários dos leitores. Depositam escancarada esperança desproporcional. Agradecem sistematicamente por algo que não sabemos se faz qualquer diferença nos resultados.

Mais adiante tentei resgatar o tema:

---------- Forwarded message ---------
De: Guilherme Brauner Barcellos 
Date: dom., 11 de out. de 2020 às 15:57
Subject: Re:
To: xxxxxxxxxxx

Para um seguimento tardio de nossa conversa, com dados adicionais. Ontem conversei com pesquisador do grupo Recovery. Estão em fase final do ECR do Plasma, um ensaio clínico bem mais robusto que o nosso, e, provavelmente, negativo. Hoje, diferente de quando chamei a intervenção alvo de nossa conversa de incerta, já possuímos 2 ensaio clínicos randomizados negativos. Um pequeno ensaio clínico chinês e um estudo argentino melhor, multicêntrico, já maior que o nosso. Ambos negativos. De incerteza total, temos hoje um ecossistema que, principalmente se o estudo do grupo Recovery vier mesmo negativo, fará com que tenhamos que considerar a hipótese de que, caso nosso pequeno ECR aberto seja positivo, ele represente um falso positivo. A probabilidade pré-teste de Plasma para COVID-19 funcionar é cada vez menor - e, do ponto de vista médico, nunca foi possível afirmar.

Bom feriado a todos, Guilherme

Já sabemos onde isso foi parar:


Materiais complementares de Plasma & COVID:


Mais recentemente, outro assunto me impressionou, mesmo que não tenha partido diretamente da instituição. 
Na reportagem, falam que: 

Tratamento aplicado ao ator Paulo Gustavo, ECMO salva 50% dos pacientes no Clínicas.

Esse hype é caso especial, pois sequer a informação precisaria ser verdadeira para justificar e bem justificar o emprego da intervenção em questão. Muito diferente de Plasma, que não deve mais ser utilizado para COVID-19, muito menos propagandeado.

Sou também intensivista e, com ou sem hype, tenho orgulho de ter ECMO em minha instituição, para os pacientes que acompanho e tanto prezo. São robustos os dados de melhoria com ECMO em desfechos intermediários como oxigenação. Ao se indicar para pacientes onde oxigenação compatível com a vida não pode ser oferecida por qualquer outro método, ou em circunstâncias muito próximas disto, estamos diante do tipo de situação na Medicina onde bastam evidências desse porte. A Medicina Baseada em Evidências diz bastar, no específico contexto e salvaguardadas exigências que nos distanciem minimamente de futilidade terapêutica. Não se queira, apenas, tornar o uso mais liberal ou precoce. Com racionalidade, indique-se! Orgulhe-se de ter. Agradeçamos existir! 🙏 🙌 Busquemos avançar em modelos de negócio / remuneração que garantam a intervenção na Medicina Suplementar e no SUS, disponibilizando aos pacientes elegíveis acesso com a necessária logística e agilidade. 

No entanto, nada disto acima significa computar todos os pacientes que sobrevivem com ECMO como sobreviventes pela ECMO, muito pelo contrário:

Fossemos analisar especificamente resultados de mortalidade por ECMO em SARA, evidências são majoritariamente observacionais e, portanto, não confirmatórias por natureza. Entre os dois ECR's principais, os achados do EOLIA em mortalidade foram sem significância estatística (testou, na verdade, uma estratégia mais liberal, já que aos controles se poderia indicar ECMO como resgate final - e muito ocorreu, configurando-se, para a hipótese em questão, num estudo negativo); o CESAR, por sua vez, foi um bom estudo não confirmatório positivo em combinado primário de morte e disabilidade, mais puxado pelo segundo desfecho, entre outras limitações. Adiante disso, algumas meta-análises espremem todos essas informações conjuntamente, mas não deveriam ser encaradas como solução para questão que, reforço, sequer precisa de solução, exceto quiséssemos a ampliação liberal de cobertura. Aparentemente alguns percebem essa flexibilização como mais fácil, ou "segura", pelo caminho da emoção e secundária sensibilização, do que pelo caminho das evidências. Vai que surge um estudo grande negativo, né? 


Em conclusão, não daria para afirmar além de que vidas são salvas com ECMO (diferente de por ECMO). 1. Não conseguiríamos discriminar, mesmo existindo benefício (leitura complementar aqui). 2. Não bastasse, o benefício, na situação pontual, é plausível, algo mais provável do que coisas apenas plausíveis, mas cientificamente incerto ainda, em terreno absurdamente complexo!

E uma nota adicional é importantíssima:

- A afirmação "barrado no SUS, o tratamento não está disponível em larga escala", ignora tendência mundial de que não ocorra mesmo. Os melhores resultados parecem acontecer com centros de excelência e referência, cujas equipes são altamente especializadas e treinadas permanentemente, tudo como apoio a regiões geográficas compostas por outras UTI's exatamente sem ECMO, trabalhando em rede gerenciada.  

Então, resto feliz por Paulo Gustavo estar em lugar com mais este recurso, o que geralmente é sinônimo ainda de uma UTI acima da média, onde ECMO é mais reflexo disto do que qualquer outra coisa. 

Médicos niilistas negariam a utilidade da ECMO em SARA e COVID-19. A Medicina Baseada em Evidências dela faz uso, e apropriadamente. A Saúde Baseada em Humildade, auto-explicativa a estas alturas, estabelece paradigma por demais interessante: ao reconhecer a incerteza, nos direciona, paradoxalmente, ao dever de valorizar mais as estruturas de Terapia Intensiva como um tudo, desviando do fascínio da tecnologia específica, e facilitando que os verdadeiros heróis da pandemia sejam destacados: técnicos de Enfermagem, demais membros da equipe multiprofissional intensiva, gestores de UTI's e hospitalares (nesta ordem mesmo).

Lembrem, por fim, que, sem equipes minimamente coesas e engajadas, muitas UTI's sofrem para realizar até mesmo manobras prona no Brasil (ilustrado aqui). Evitar hypes é também colaborar com hierarquização de recursos, objetivando o benefício final do maior número de indivíduos com o orçamento disponível.  

Se for verdade que pessoas, de um modo geral, não gostam de gente com dedo em riste os dizendo que devem fazer diferente, talvez tenhamos mais sucesso rebatendo menos asneiras de Bolsonaro, enquanto fortalecemos, em paralelo, um sistema cuja cultura geral envergonhe a quem apresenta promessas descalibradas, consequentemente expectativas descabidas. Esse sistema não representa, hoje, a Medicina ou a Saúde brasileiras na suas relações com a sociedade...
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