sábado, 14 de novembro de 2020

Como assim o melhor tratamento pode não ser o mais indicado?

Há algumas semanas atrás, fui envolvido em um caso de uma das maneiras que mais incomoda a nós médicos, parte ao menos: sem poder de fato mudar qualquer coisa. Quem pede não costuma ter culpa alguma, e fizemos o possível para esconder o desconforto...


Era um paciente nonagenário, com fragilidade funcional prévia, que vinha sintomático por angina. O tratamento medicamentoso era inadequado, insuficiente. Frente à suposta difícil compensação clínica, se optou por estudo de anatomia coronária. Encontrou-se lesão de tronco. Foi oferecida cirurgia cardíaca como único caminho.

Não restam muitas dúvidas de que cirurgia é superior à angioplastia ou tratamento medicamentoso na redução de mortalidade, infarto e controle de sintomas. Segundo texto de meu amigo cardiologista Luis Claudio, "a estimativa sumária do risco relativo da cirurgia para mortalidade é 0.73, o que implica em 27% de redução relativa do risco. Sabemos que a redução relativa obtida com tratamentos em geral tende a ser constante em diferentes tipos de pacientes. Porém, esta mesma redução relativa de 27% resultará em maior redução absoluta em um paciente de alto risco ou numa menor redução em um paciente de baixo risco. Se a mortalidade do paciente é 20% sem cirurgia, redução de 27% equivale a 5% de redução absoluta (Number Needed to Treat = 20, grande impacto); mas se a mortalidade do paciente for estimada em 5%, redução de 27% equivale a apenas 1.4% de redução (NNT = 71, pequeno impacto). Os trabalhos normalmente descrevem o risco relativo, pois este tende a ser constante em diferentes populações, tem boa validade externa. Mas o verdadeiro impacto na vida do paciente é a redução absoluta do risco, a qual varia com seu risco basal. Para um paciente pouco grave, o benefício deste tratamento mais agressivo não valeria a pena".

Entretanto, o paciente em questão era de alto risco, muito alto risco. Aí entra outra discussão: sobre o "preço" a ser pago pelo benefício. Novamente, nos utilizemos de conteúdos antigos do Luis:

"Imaginem um muito idoso, de alto risco também cirúrgico. Este terá uma cirurgia muito sofrida, com risco de complicações e até sequelas. Mesmo que venha a reduzir sua mortalidade, deve-se avaliar se queremos pagar esse preço com um procedimento de tamanha agressividade. Sim, nem sempre queremos pagar o “preço” da redução de mortalidade. Sabem o por quê? Porque saber que cirurgia reduz mortalidade não significa salvar a vida de todo paciente cirúrgico e deixar morrer todo paciente com angioplastia ou tratamento clínico. Não é algo dicotômico assim. Precisaremos tratar com cirurgia um grande número de pacientes para que 1 deles tenha a vida salva por ter feito cirurgia. Se o NNT da cirurgia fosse 20 (grande impacto), isto quer dizer que 19 de 20 pacientes não se beneficiariam desta redução de morte, mas pagariam o “preço” da cirurgia. Desta forma, medicina baseada em evidência não é seguir sempre o resultado de um ensaio clínico. Devemos computar o quanto a cirurgia é melhor e saber caso a caso se vale a pena pagar o “preço” da potencial benefício".

O paciente teve um pós-operatório complicado, mas superou. Por isso, e apenas assim, resolvi escrever sobre outros caminhos possíveis:

Ainda em 2016 foi publicado no New England Journal of Medicine o Excel Trial. Comparou cirurgia com angioplastia havendo justamente lesões de tronco, as mais temerárias. Evidenciou 4% de aumento de risco com o tratamento percutâneo (menos agressivo) em comparação à cirurgia. Em outras palavras, se 25 pacientes abdicassem do tratamento mais simples (menos sofrimento) e fizessem cirurgia, apenas 1 paciente se beneficiaria da conduta mais agressiva. No raciocínio de economia clínica, o preço do tratamento cirúrgico (mais sofrimento) é garantido. Porém o retorno do investimento não é garantido, há apenas 4% de probabilidade de retornar o investimento sob a forma de prevenção de desfecho cardiovascular (NNT foi aqui de 25).

O X da questão é que pacientes e familiares não recebem todas essas informações, na maioria das vezes. Pensando racionalmente, de posse das informações completas, muitos provavelmente escolheriam o tratamento menos agressivo. Lembrando ainda que o benefício de mortalidade da cirurgia cardíaca não se evidencia em curto prazo (algo importantíssimo para alguém com outra doença ameaçadora da vida em fase avançada ou em extremo etário). Lembrando ainda que a opção inicial por uma abordagem menos agressiva não impede de se optar, em algum momento, pela mais agressiva.

O que eu faria nesse caso, se pudesse ter intervido no momento certo:

- Otimizaria ao máximo o tratamento clínico, eventualmente até mesmo com inicial passagem por UTI, seja para tentar otimização em ambiente mais controlado, seja para descartar algum elemento oculto na passagem de informações e que eventualmente justificasse mesmo abordagem mais agressiva imediata (aparentemente não havia);

- Provavelmente acabaria recomendando stent(s) coronário(s) se não compensasse logo;

- Jamais entregaria a responsabilidade principal e decisão final para um cirurgião cardíaco, exceto alguns poucos que fazem também angioplastias. Casos complexos assim devem, na minha humilde opinião, ser conduzidos, com agilidade, mas não correria exagerada, por alguém integrador que coloque hemodinamicistas e cirurgiões cardíacos frente à frente, buscando uma decisão conjunta. Adiante da decisão conjunta médica, decisão compartilhada com paciente (idealmente) ou familiares, a partir de TODAS as informações e necessariamente levando em conta valores e preferências de quem está com a pele em risco, pode, ainda, contrariar o posicionamento dessa junta médica, sem justificar melindres de qualquer natureza, partindo-se para o melhor tratamento possível dentro do caminho escolhido (lembrem que não haveria garantias em nenhum dos caminhos). 

Quanto à agilidade, sem atropelo, se justifica, fora do contexto outro de síndrome coronariana aguda, por:

Desfecho Primário do Excel Trial

1. Preponderância de benefício da cirurgia cardíaca passar a ser percebida, mesmo nesses pacientes de muito alto risco do Excel Trial, a partir dos 24 meses;

2. Mesmo a partir da abordagem com angioplastia, que provavelmente nem mesmo em lesões proximais impacta em redução probabilística relevante de mortalidade, a maioria dos pacientes se manteve vivo ao final de 3 anos. Entenda-se, então, que o risco é, por definição médica, alto, muito alto - mas não apocalíptico. Em alguém nonagenário, concorre com o simples risco de se estar vivo. Passa a concorrer mais do que nunca ainda com "como quero estar, enquanto estiver vivo".

Por fim, não esperem de mim visão inculpadora contra esse ou qualquer cirurgião cardíaco na mesma situação. É mais do que natural o caminho ser a cirurgia quando o cirurgião cardíaco está posicionado inadequadamente no sistema: ele sabe fazer, seu tratamento é eficaz (até mesmo o melhor), e é o que ele sabe fazer.

No caso específico, o cirurgião ainda "ganhou". O paciente, aos noventa anos, superou a cirurgia (não sabemos se é o abnegado daquele "sorteio" que impacta em mortalidade) e teve alta hospitalar. Ocorre que não possuímos bola de cristal para largar sabendo.... Esse é o ponto nevrálgico da questão!

Havia um cardiologista clínico no caso que teria optado também pela recomendação de stent(s). Nesses microssistemas há outra característica bastante comum: hierarquia disfuncional nas equipes impede o debate franco e o contraditório. Nunca manifestou isso lá! 

Complemento 05/12/2020: Paciente permanece em casa, mas praticamente entre cama e poltrona. Perdeu bastante funcionalidade. 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

COVID-19 afetando o cérebro: estudo demonstra danos ao Raciocínio Clínico.

Era início de madrugada e recebi paciente na UTI.

SIDA, sem tratamento adequado, em mal estado geral. Atendido em casa pelo SAMU, entubado no ato do atendimento lá, trazido ao hospital. Chegou chocado. Bastante chocado.

História prejudicada, mas sugeria redução progressiva no nível de consciência em 36-48hrs, provável insuficiência respiratória aguda de causa neurológica e/ou choque. Mas como insuficiência respiratória e tubo orotraqueal lembram pulmão, e pulmão lembra COVID, foi transferido para área restrita. 

Na Emergência, solicitaram PCR para conoravírus. Frente ao rótulo "COVID-19", Dímeros-D foram, no piloto automático, incluídos.

Na UTI, RX de tórax normal. Mecânica ventilatória e oxigenação compatíveis com quadro de insuficiência respiratória aguda de causa não pulmonar - impressão de estarmos com um pulmão normal em ventilação mecânica! Avaliação ecocardiográfica e de membros inferiores sem sinais diretos ou indiretos de tromboembolismo venoso. Leucocitose e desvio. PCR elevada. Choque descompensado era o mais relevante naquele momento... Choque séptico? Culturas não haviam sido solicitadas, mas Dímeros-D não faltaram. 

Como parte da abordagem do choque grave, fui me preparando para passagem de acesso venoso central e linha arterial. Havia visto registro da Emergência apontando Dímeros-D elevados, "inicio Enoxaparina em dose plena". Perguntei se havia recebido o anticoagulante e a resposta primeira foi não. "Não façam então", avisei, enquanto me paramentava para os procedimentos.

Passagem de acesso venoso central guiada por ecografia transcorreu sem intercorrências. Houve tentativa sem sucesso de passagem de linha em radial. Após passagem em artéria femoral, evoluiu, como complicação da punção, um enorme hematoma. 

Havia recebido a Enoxaparina!

PCR para coronavírus, saiu, mais adiante, negativo. O paciente não tinha COVID!

Pré-pandemia, utilizávamos do valor preditivo negativo dos Dímeros-D em pacientes com probabilidade pré-teste baixa. Houvesse alta probabilidade clínica, nem considerávamos utilização de Dímeros-D, mesmo que a decisão fosse anticoagular até outro exame mais definitivo. O que acontece agora??? Danos do vírus ao Raciocínio Clínico?   

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