terça-feira, 7 de abril de 2020

"Hidroxicloroquina porque não há outra alternativa!" Bobagem!

Esse texto é para quem não é profissional da saúde e é incapaz de perceber o elevado número de ações importantes que podemos oferecer para os pacientes que eventualmente evoluem mal no curso de infecção por coronavírus.

Temos muita coisa para ativamente fazer, principalmente nos casos graves.


Recentemente, meu amigo Luis Correia escreveu o texto Hidroxicloroquina: o dia em que a ciência parou e alguém comentou:

"Existem atualmente ZERO alternativas de tratamento, qualquer chance de possibilidade deve ser testada"

A pessoa certamente quis dizer "tentada", ao invés de "testada". Testar foi justamente o caminho sugerido por Luis - pela ciência, em última e verdadeira instância.

Na mesma linha do "no desespero vale tudo", outros vários comentaram seu texto. Mas será que as UTI´s realmente oferecem tão pouco e precisamos de soluções não bem testadas?

A própria postagem de Luis mais acima tenta responder sobre a utilização de soluções incertas fora de rigorosos protocolos de pesquisa ou situações de plausibilidade extrema. Focarei em tentar responder outra questão: estão fazendo pouco das UTI's e suas equipes?


Na fotografia ao lado, registro de curso de ventilação mecânica que eu organizava em meados dos anos 2000. Havia a estação Bird Mark 7 - entenda melhor este velho companheiro. Intenção era ilustrar um pouco da história da ventilação mecânica de forma prática - nas outras estações utilizávamos modernos, para a época, ventiladores microprocessados. Mas é verdade também que o Bird Mark 7 ainda era utilizado no Rio Grande do Sul, principalmente no interior.


Para começar, exemplos de duas abordagens potencialmente impactantes na epidemia atual, ambas ancoradas no ventilador mecânico, pedra angular do TRATAMENTO de síndromes respiratórias como as causadas pela COVID-19:

1) Bem ventilar mecanicamente o paciente (o que tecnicamente chamamos de buscar ventilação protetora).

Essa abordagem específica é baseada em alguns ensaios clínicos randomizados e meta-análises que avaliaram mortalidade.

Exige educação e treinamento da equipe. Engloba ainda uma série de condutas paralelas, como sedação do paciente e bloqueio neuromuscular (quando e como fazer), não menos desafiadoras. O desafio de manter a equipe permanentemente atualizada e preparada para essas questões não pode ser subestimado.

2) Ventilalar mecanicamente com o paciente de bruços (o que tecnicamente chamados de pronação ou manobra prona).

É outra abordagem que parece reduzir mortalidade. No entanto, requer expertise especial de uma equipe em sintonia. E esse é um ponto importante nessa discussão onde não existe vácuo: onde aparece Hidroxicloroquina, ocupa-se tempo e energia que poderiam estar sendo direcionados para outro lugar...

Clique na figura e leia publicação que escancara a complexidade do processo.

Assumindo agora que um bom médico não prescreveria Hidroxicloroquina simplesmente porque o Trump ou o Bolsonaro acreditam que funciona, e que gastaria cerca de 1 hora para uma busca sobre a droga e mínima avaliação, vejamos o que é possível fazer nesse tempo numa UTI, dessem tranquilidade para instâncias técnicas superiores como o Mandetta* simplesmente dizerem em voz alta e forte: "À luz da evidência, não existe Hidroxicloroquina para COVID-19"

* Mandetta parece estar escolhendo as brigas mais necessárias, e talvez esteja mais uma vez certo.

O que é possível fazer em 1 hora numa UTI?

a) É possível uma reunião proveitosa entre os médicos e fisioterapeutas intensivistas líderes, vislumbrando redução de variabilidade não aceitável em condutas ligadas à ventilação mecânica e manobra prona, reforçando pilares do que chamamos de melhores práticas, com vistas a posterior treinamento da equipe toda;

b) É possível fazer um bom treinamento da equipe intensivista sobre ventilação protetora, contextualizando com especificidades já conhecidas da COVID-19; 


c) É possível fazer um bom treinamento da equipe intensivista sobre manobra prona;

d) É possível revisar com a equipe responsável se estão coletando certinho os testes diagnósticos para a COVID; 

E por aí vai.... 

Sem contar o desafio tantas vezes necessário da incorporação tecnológica nas UTI's:


Ou da adequação das próprias equipes, como em número de enfermeiras e posicionamento.

Já fui chefe de uma UTI onde haviam poucos intensivistas de formação. O rotatividade de pessoal da Enfermagem era comprometedora. Prevalecia o medo da manobra prona por falta de treinamento e hábito. Faltava ventilador de transporte para situações onde seria necessário buscar um melhor entendimento do quadro a partir de tomografia a ser realizada fora da unidade. Nenhuma pressão com um décimo da potência da Cloroquina era percebida.

Quem não atua em UTI, Emergência ou situações de desastres não reconhece o quanto carecemos pouco de pílulas mágicas (por mais que ajudem, medicamentos sequer costumam ser), e muito de organização, alinhamento de processos, treinamentos, trabalho em equipe e revisões constantes de tudo isto.

Sintetiza primorosamente a filósofa Olgária Matos (2008):
A “escalada da insignificância” resulta numa lógica de desengajamento em relação ao mundo compartilhado. 
Nos anos 50, a epidemia de poliomielite deu o grande ponta pé em direção ao que deveriam ser hoje UTI's modernas e transformadoras. Quem sabe direcionar energia e recursos agora para o que realmente importa? Se corrermos, será possível beneficiar os doentes por coronavírus, e ainda deixar melhorias de herança, que certamente não serão como os estádios da Copa.

Quem for compartilhar, quem sabe o faça acrescentando qualquer coisa mais útil do que medicamentos não comprovados e que uma UTI poderia estar oferecendo? Ou quem sabe uma outra opção do que fazer em 1 hora numa UTI em substituição a debater sobre hipóteses nulas intocadas?   

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