segunda-feira, 23 de junho de 2014

Gestão de Corpo Clínico: entre conceitos ultrapassados, novas realidades e hospitalistas

Participei em recente evento de Gestão do Corpo Clínico, em São Paulo, entre maioria de palestrantes e participantes representantes do nível estratégico ou do alto nível tático de organizações hospitalares brasileiras. O painel foi sobre corpo clínico aberto versus corpo clínico fechado, e fiquei com a impressão, a partir de conversas preliminares, de que, pela minha identificação com hospitalistas, muitos esperavam defesa contundente ou exclusiva de corpo clínico fechado. E que boa parte destes esperava que eu fosse propor isto na forma de Revolução, substituindo o “velho” pelo “novo”, onde todo hospital privado virasse integralmente de equipes contratadas (em parte pelo mito do hospitalista como obrigatoriamente empregado do hospital) e com generalistas não subjugados ao poder de terceiros (mito da autonomia médica como variável indivisível).

Para começar deliberadamente confundindo, apresentei dados de 2011 Today’s Hospitalist Compensation & Career Survey: Mais da metade dos hospitalistas nos EUA não são empregados dos hospitais! Muitos ainda não compreendem além de superficialmente o modelo, e que as possibilidades de contratos, vínculos e formas de remuneração dos profissionais podem variar bastante. Interessa mesmo onde se quer chegar, e como se vai tentar.

A partir disto, posicionei-me dizendo que as definições clássicas de corpo clínico aberto e fechado, da década de 70, já não dão conta da complexidade e do dinamismo da prática hospitalar moderna. Além disto, são pouco centradas no paciente e, muito frequentemente, servem apenas para fomentar exercícios de poder improdutivos*.

* tanto exercícios de poder do tipo “aqui neste pedaço mando eu e mais ninguém”, como o contrário. Estive em hospital recentemente cujo grupo da Emergência justificou lacunas em etapas do cuidado e/ou de registros em prontuário com o argumento de que o paciente era do médico x ou y, representante de corpo clínico aberto. Quando questionei, rebateram com a importância da coordenação do cuidado por uma única pessoa e da continuidade não apenas do cuidado, mas das e nas equipes, dizendo que eu próprio defendia isto (leia aqui e aqui). Ocorre que, na vida real, 100% de continuidade pela mesma pessoa é meta intangível, não podendo servir de justificativa para não fazer o que não deve ficar para depois, mesmo que rediscutamos tarefas e funções logo ali adiante. Em recente evento internacional, escutei apresentação de Eric Edwin Howell, Division Director, Collaborative Inpatient Medicine Service (CIMS) at Johns Hopkins Bayview Medical Center, onde disse que, no seu hospital, há um grupo que trabalha estratégias para troca mais segura de informações entre profissionais e entre equipes. Ele, segundo suas próprias palavras, trabalha para que este grupo seja o menos necessário possível. Percebam como são questões complementares, embora exista hierarquia de importância.

Em palestra anterior a minha, fora do painel em que participei, houve quem apresentou a seguinte ideia: “O corpo clínico pode ser composto por médicos contratados ou é aberto”, dando a entender no seguimento imediato que avaliação de desempenho poderia/deveria ser feita apenas em um deles – o mesmo grupo do qual seria indicado exigir imediata e não negociável adesão a normas e rotinas. Fiquei com a certeza, neste momento e em algumas outras oportunidades distribuídas por todo o evento, que muitos gestores convictos de que não podem prescindir do seu corpo clínico aberto os tratam como "mal necessário". O termo mais usado para criticar o profissional foi “distante”. Não é de se surpreender que reclamem de falta de parceria, por mais que tentem agradá-los: até mesmo na vida, quando, em um casamento, alguém está ali por pura obrigação, e não por convicção, pode existir contrato e até intenção, mas não haverá sintonia e reciprocidade espontânea.

Ora, o profissional distante não é necessariamente indesejável. E, muito menos, é ou deve ser ingerenciável (a dificuldade aumenta, isso sim). Assim como (e voltando ao ponto central) acredito que, nos dias de hoje, cria-se uma dicotomia muito pouco prática ao se sugerir escolha binária (entre duas alternativas e uma, ou outra, tem de ser escolhida). A complexidade e o dinamismo da prática moderna exigem entrelaçamentos e inovações.

O sistema norte-americano (e cada vez mais o nosso) já está claramente dividido com 3 tipos de médicos categorizados de acordo com sua relação com o hospital, e não mais em corpo clínico aberto ou fechado: The Home Team (intensivistas, emergencistas e, mais recentemente, hospitalistas - entre outras inúmeras possibilidades que merecem muito cuidadosa avaliação de custo-efetividade), Important Visitors e Office-Based Physicians. O que deve determinar a escolha entre os dois primeiros? A realidade local e atual (quem és, qual teu perfil, quem são teus pacientes, onde queres chegar, o que é mais custo-efetivo para a tua organização) deve pautar a maior utilização de um ou de outro, bem como a maneira de se relacionarem. Não se trata mais de escolher um ou outro. E neste novo cenário, um médico distante não necessariamente é ruim. Interessa seu desempenho e seus resultados. Determinada organização poderia optar por usar de tele-dermatologia, por exemplo, e isto não deveria implicar que o professional atue dissociado de políticas institucionais ou procedimentos operacionais padrões, descompromissado com ações que gerem qualidade e valor, mesmo estando, e literalmente, à distância. Bem como acredito que determinados perfis de hospitais não beneficiam-se de médicos “tão próximos” nas enfermarias, digo hospitalistas. É preciso medir, autoconhecer, e então escolher, gerenciar. Há instituições que reclamam de seu corpo clínico aberto, sem saber os resultados das diversidades envolvidas. Como colocou César Abicalaffe em sua apresentação no mesmo evento: “se você não pode medir, você não pode gerenciar” (Drucker); “se você não pode gerenciar, você não pode melhorar” (Harrington); “melhor é a avaliação de desempenho e seus resultados em saúde quando analisa o resultado de ações integradas (mundo real), mas discriminando e diferenciando participantes com consistência, transparência e comunicação assertiva com todos os envolvidos” (Abicalaffe).

Cabe as organizações então, a partir de seus princípios essenciais (missão, visão e valores) e metas estratégicas, estabelecer necessidades, funções e objetivos. E padrões mínimos para todos*, sejam médicos distantes, visitantes ou próprios da casa. Promover trabalho em equipe. Qualquer coisa diferente disto é desequilibrar a balança para pura conveniência de alguns, sem foco no paciente. Tão importante quanto o cliente externo deve ser o cliente interno, que não pode ficar como o mexilhão, pressionado entre o mar e o rochedo - analogia capaz de ilustrar bem a natureza antagônica ou contraproducente da competição entre diversos stakeholders em nosso sistema de saúde.

* Administrators must measure quality indicators, mortality, length of stay, readmissions, infection rates, cost per case and other metrics and set minimum standards for physicians who practice in their hospital whether they are hospitalists or not. The minimum standards should be the same for all. Perverse financial incentives will unfortunately promote care processes that are not necessarily in the best interest of the patients. David Klocke, Chair, Division HM, Mayo Clinic em troca de e-mails comigo em 10/2010.

No final de minha fala, apresentei um modelo global de assistência em enfermarias onde encaixo hospitalistas com o modelo tradicional, não em substituição, também não como “serviço de apoio” exclusivamente.

Recentemente, Gerente de Qualidade e Segurança de tradicional hospital paulista disse-me: “vontade até teríamos de ter o tipo de hospitalista que defendes, mas não podemos em razão de nosso corpo clínico”. Espero ter sido capaz de demonstrar que não proponho nenhuma Revolução.

Se é verdade que médicos têm muito a melhorar, desapegando-se de seus próprios mitos e crenças, está na hora de gestores pararem de tratar médicos visitantes como “intocáveis” e intensivistas, emergencistas e hospitalistas como “móveis e utensílios”.

Os desafios da próxima década são Trabalho em Equipe, Avaliação de Desempenho e Gestão de Pessoas.

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