quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Em defesa do possível

Há muitos anos, estudo conflitos de interesse na Medicina. Com a ajuda de colegas e algumas organizações, realizei e sigo promovendo debates e ações envolvendo o tema. Já foram vários colaboradores ao longo deste tempo - alguns cansaram e abandonaram por perceber pouco alcance. Aos céticos, digo que percebo avanço lento e gradual.

Quem sempre esteve conosco foram os “radicais anti-indústria” - aahh, estes são fiéis! Houve ainda casos de pseudo-aliados que nitidamente vestiram a camiseta enquanto na vitrine por palestras e outras formas de “aparecer” - exatamente o mesmo mecanismo através do qual farmacêuticas captam bons profissionais para falarem muito pouco criticamente de coisas nas quais não acreditam 100% ou que têm ressalvas.

Dentro das iniciativas desenvolvidas, mais recentemente, lançamos o Blog intitulado Evidence Biased Medicine, e, a partir dele, atuamos também em eventos científicos, entre outras atividades. Escrevo desta vez aqui pelo compromisso que temos de, nesse outro espaço, e dentro do possível, não misturar temas políticos ou ideológicos. Mas, obviamente, tenho minhas próprias preferências. Que, naturalmente, influenciam-me. Sou capitalista, por exemplo! Ao mesmo tempo, sou um grande crítico do capitalismo, objetivamente porque acredito que precisa ser aprimorado constantemente, como forma de nos afastar cada vez mais de modelos piores. Não é, e nunca será perfeito! Tanto os paladinos do capitalismo quanto os do socialismo mencionam as deficiências de um sistema como razões para defender o modelo alternativo. Sou defensor de focar nas deficiências do meu modelo (e de todas minhas preferências) e fazê-lo(las) melhor(es). E não acredito em mundo perfeito.

Não foram poucas as vezes que também pensei em abandonar o movimento. Revelei acima algumas preferências pessoais, como forma de me fazer compreender. Estamos cercados por radicais de todo tipo (anti-capitalismo, anti-Medicina, anti-medicações, anti-psiquiatria, anti-vacinas, zooxiitas - termo que escutei recentemente para definir defensores radicais dos direitos dos animais - e todas suas contrapartes), produzindo um cenário confuso, que inviabiliza a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse sempre uma condição ideal a priori da qual não se pode abrir mão - o socialismo, por exemplo. Ou um mundo sem indústrias farmacêuticas.

Tenho dificuldades de lidar com todos - inclusive as "contrapartes". Mas, inegavelmente, desafiam-me mais os radicais do tipo anti-capitalista ou anti-medicações. Nossa única ligação é com o fato de que criticamos o relacionamento entre médicos e indústrias de medicamentos/tecnologias. Nossas diferenças iniciam na forma como teorizamos deva ser apresentada a questão, ficando ainda mais evidentes em nossas proposições ou atitudes práticas. Que não me entendam mal (algo difícil neste mundo de inaceitação da crítica)... Historicamente foram, e continuam sendo, quem mais apoia nosso blog e seus desdobramentos, divulgando textos, artigos, e participando dos eventos que promovemos ou divulgamos. Nosso movimento é tão frágil que não pode perder nenhum aliado. Apenas defendo que uma postura mais moderada e focada no caso em questão pode ser mais eficiente e resolutiva - para o caso em questão.

Percebe-se claramente no discurso de muitos dos médicos radicais anti-farmacêuticas a cobrança por profissionais "éticos". E é sempre ruim quando fazem isto em tom que sugere estarem cobrando colegas a imagem e semelhança deles próprios. Pior quando confundem ética com opções de formas e estilos de vida. Ou em tom que clama por um “mundo perfeito” - espaço 100% livre de mazelas como vaidade e corrupção, que para tal deve seguir as tais formas e estilos de vida por eles propostos.

Por que pouco ajudam?


Porque embora façam número e coro quando algum escândalo vem a tona, e divulguem nossas notícias e posts mais picantes, muito pouco colaboram para melhorar o mundo real - naturalmente humano, imperfeito por falta de opção. E, me atrevo a dizer, que mundo legal! Um mundo sem pitadas de problemas e defeitos provavelmente seria monótono, entediante. Então, eles ajudam pouco porque se comportam como soldados na espreita, em batalha acontecendo, onde, embora tenham claramente definido um lado, ficam à espera da reunião de todos seus inimigos no mesmo campo de guerra e na mesma hora.

Costumam ser profissionais ligados a especialidades médicas onde o contato com indústrias, empresas, consultores ou mesmo propagandistas é naturalmente menos necessário. Será que avançamos mais exigindo o "ótimo" (reflitam que isto já é um ponto de vista) para todos, ou aceitando variantes de bom? Reconhecer e aceitar diferenças entre perfis profissionais, e entre características de relacionamentos destes grupos com outros stakeholders e com o mercado, me parece fundamental...

São implacáveis ao criticar especialidades tecnológicas por excesso de testes diagnósticos, mas não se esforçam, com o mesmo ímpeto, para entender e combater o impacto sistêmico de nosso perverso modelo de remuneração, e o quanto afeta distintamente especialidades predominantemente tecnológicas e predominantemente cognitivas (as suas). Esta questão é mais complexa do que "os intrinsicamente bonzinhos promovem uso racional de medicamentos e tecnologias, e os que mal desempenham são bandidos vendidos". É a mesma limitação que faz muitos acreditarem em dicotomia reducionista simplória, onde o médico ou é um sub-especialista hiper-atualizado, mas insensível às dificuldades do país e das pessoas, ou é um generalista humano, sensível e engajado nos problemas sociais. Meu amigo Stephen Stefani recentemente escreveu sobre isto, chamando de simplicidade grosseira, "que apenas cria personagens para uso político e partidário". Tem toda razão!

Curiosamente, estes que aqui critico, negam-se a discutir conflitos de interesse com os quais se envolvem (vide fluxograma).

Nosso pressuposto é de que a ética das relações humanas é uma construção histórica e social, portanto é possível sua defesa em qualquer tempo, lugar ou sistema econômico.

Desta forma, entendemos que, para avanços mais rápidos e maiores, uma cultura diferente ainda precisa surgir:

• Menos maniqueísta;

• Mais crítica em relação a si mesmo ou ao grupo a que pertecemos;

• Mais focada em uma "ética melhor", não sendo necessário parar de sonhar ou de acreditar em utopias até, mas buscando melhorias - a partir do ponto em que se está, e do tamanho que for possível.

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