O chamado escândalo das próteses é um tema importantíssimo, mas constitui apenas um dos sintomas nefastos de uma doença maior: o modelo de remuneração de prestadores de serviços médicos, principalmente hospitais.
É caso de polícia a indicação que alguns médicos fazem de órteses, próteses e materiais especiais (OPME) sem a devida indicação clínica com o simples propósito de aumentar seus ganhos financeiros.
A lógica por trás dessa prática, no entanto, é a mesma que incentiva a indicação de uma enorme quantidade de exames e procedimentos médicos: o modelo atual de remuneração, que estimula o consumo de OPME, de materiais em geral, de medicamentos e de tecnologia como fonte de receita.
É importante dizer que, ao concentrar seu ganho no almoxarifado, os hospitais buscam compensar a perda que têm com os valores de diárias, taxas e serviços que vêm sendo comprimidos nas negociações com as operadoras de saúde.
Esse modelo cria graves distorções, como a redução do ganho da maioria dos médicos --que age com lisura--, comprimido por gastos crescentes com insumos, que respondem às vezes por 60% de uma conta hospitalar, e a realização de procedimentos desnecessários ou sem a devida comprovação de indicação clínica.
Ademais, não há alinhamento com o propósito do sistema, que deveria ser o de alcançar o melhor desfecho clínico com a melhor equação custo-qualidade-efetividade e incentiva o desperdício em um setor que tem uma carência crônica de recursos.
Para o consumidor de plano de saúde, essa situação se traduz em mensalidades maiores e insegurança clínica. É um sistema que se alimenta do aumento das receitas pagas pelos beneficiários, e não da racionalidade no uso dos recursos.
Se não mudarmos esse modelo de remuneração, as distorções podem até ser minimizadas, mas serão substituídas por outras mais elaboradas. Vão continuar alinhadas a incentivos econômicos que atendem aos interesses de alguns atores da cadeia produtiva, mas não aos daqueles de quem se pretende cuidar. Tanto para hospitais como para operadoras, a mudança de modelo é também desejável.
O que sistemas de saúde mais desenvolvidos praticam é a chamada remuneração por pacotes e diárias globais, em que são negociados valores fixos atrelados à condição clínica do paciente e a protocolos balizadores de tratamento.
Alguns mais avançados já envolvem um percentual de remuneração condicionado ao sucesso efetivo alcançado para o paciente. O nome do jogo passa a ser o da eficiência: ganha mais quem tem melhor desempenho, e não quem gasta mais.
No Brasil, essa mudança no modelo de remuneração ainda encontra resistências. Vem sendo desvirtuada pela discussão a respeito de o governo estender ou não a regulamentação na saúde suplementar para os prestadores de serviço, como hospitais, uma vez que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) só regula as operadoras de saúde.
A própria ANS já tentou patrocinar essa mudança e, por mais de dois anos, manteve um grupo de trabalho para a discussão do tema com representantes de hospitais e operadoras. Esse esforço, infelizmente, não atingiu objetivos práticos.
Interesses à parte, é difícil acreditar que o mercado, por si só, será capaz de promover essa mudança. Urge que o Ministério da Saúde, em conjunto com as agências reguladoras e demais órgãos envolvidos, conduza esse processo vital para maior eficiência e sustentabilidade do setor. Essa é uma ação imprescindível e estruturante que irá melhorar a saúde (e o bolso) de mais de 50 milhões de brasileiros.
Por MAURICIO CESCHIN, 56, clínico-geral e gastroenterologista, é presidente do Grupo Qualicorp e coautor do livro "A Saúde dos Planos de Saúde" (editora Paralela), em Folha
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