Recebi este relato:
"Caro Guilherme, escrevo para descrever
situação, considerando que possa explorá-la em seu Blog, e que desdobramentos
e discussões tragam ao menos insights úteis para o movimento de segurança do
paciente. Agradeço a preservação da identidade dos todos os envolvidos.
Sou médico de meia-idade, modéstia a parte muito bem
sucedido, e atuo em renomadas instituições de capital, muito comumente
envolvido com casos clínicos complexos ou pacientes graves.
Atendi recentemente idoso em enfermaria, um suposto caso de
asma exacerbada. Descrição de que chegou bastante mal. Já o conheci
provavelmente melhor, depois do manejo no PS, ao comparar com registros e
relatos. Ainda chiava bastante. Na minha segunda visita, estava, comparado ao
dia anterior, definitivamente melhor, chiando muito menos, mantinha ausculta
pulmonar simétrica bilateral. Sai do quarto e registrava o atendimento no
computador junto ao posto de enfermagem quando chamaram por parada
cardiorrespiratória - em meu paciente. Fui correndo até o quarto, chegando
junto do médico intercorrentista. Ele, sabendo de minha condição de assistente
principal, colocou-se inicialmente em posição de retaguarda. Mas percebeu minha
demora em atuar, e chamou para si a liderança do atendimento: iniciou massagem
e passou a delegar as primeiras ações, enquanto aguardávamos o time de parada
cardiorrespiratória.
Reflexão #1: Sou um médico bem
experimentado neste tipo de atendimento, mas bem verdade que fazia algum tempo
sem atuação prática ou treinamento em ressuscitação cardiorrespiratória. Avaliando
retrospectivamente, percebo claramente que, surpreendido e surpreso com a
evolução apresentada pela paciente, perdi momentaneamente o foco necessário –
estava com os pensamentos mais voltados para o que levou o idoso a colapsar
daquela forma. Foi quando o colega resolveu, assertivamente, assumir o controle
da situação. A primeira falha foi minha!
Logo depois chegou o time da parada cardiorrespiratória.
Todos vestidos iguais, aventais verdes de área fechada. Ninguém se apresentou.
Um rapaz bateu no ombro do médico intercorrentista que estava a massagear e
disse com muita propriedade: - “deixa conosco”. Reforçou algumas ordens e
questionamentos, como “monitorar”, “acesso venoso?”. Eu e o plantonista do
andar colocamo-nos como observadores do atendimento, eu convencido que o rapaz
era o médico da equipe. Pouco tempo depois chegaram outros dois de verde, mas
nada falaram. Um deles dirigiu-se à cabeceira para manejo de via área,
interpretei que era um segundo médico. O rapaz que bateu no ombro do colega era
um (muito bom) técnico de enfermagem. Naquele time, todos correram para o
ambiente da grave intercorrência, menos os médicos, que, caminhando, chegaram
depois.
Presenciei coisas diferentes das previstas em manuais
internacionais de boas práticas. Demorou-se para avaliar o ritmo da parada,
houve dificuldades na intubação por questões técnicas, não vi checarem se o
tubo estava no lugar certo a partir da tradicional ausculta epigástrica e dos
quatro campos pulmonares. Definitivamente não havia papéis e funções claramente
definidos.
O paciente teve a parada revertida e foi encaminhada à UTI.
Reflexão #2: Façamos uma analogia
entre o atendimento de uma parada cardíaca e o Pit stop de corrida
automobilística. No Pit stop, não basta o abastecimento e a troca de pneus. Se
tudo não ocorrer em menos de minuto e seguindo um alto padrão de qualidade, de
nada adianta, ao final, o tanque cheio e os pneus novos. Pois então...
Será que na Saúde não estamos
aceitando coleção de falhas, como se em nosso Pit stop não importasse o tempo
ou a eficiência? Eu próprio já participei como líder maior em atendimentos que
não transcorreram idealmente, mas quando o paciente é “salvo” (tem pulso! saiu
da parada!) eximimos-nos de pensar mais amplo, por diversas razões... Guilherme,
se esperarem de cada um de nós a auto-crítica e a ação relacionada, não
acontecerá, nada acontecerá. É até compreensível, entendes?
Fui lá na UTI algum tempo depois, na expectativa de passar
melhor o caso, uma das minhas hipóteses diagnósticas (embolia pulmonar) e
sugestão de avaliação diagnóstica: - “gostaria, assim que estabilizado, e se
possível, que o encaminhássemos para uma angiotomografia”. Era início da noite
e fiquei com a nítida impressão de que os colegas queriam fazer as coisas o
mais rápido possível. Outra sensação era de que eu estava atrapalhando, ou pelo
menos sobrando. Cheguei a perguntar se queriam que eu assumisse daquele momento
em diante. Acho que também não me apresentei como médico assistente (a gente
sempre pensa que é óbvio, não?). Posso ter sido confundido com o intercorrentista do andar. A resposta foi: - “quem sabe senta no
computador e deixa descrito o que gostaria de dizer”. Retraí-me. Muito
fortemente.
Reflexão #3: Terei errado
novamente, Guilherme? Não gostaria que fosse verdade, já bastante incomodado
com a primeira falha. Mas saiba que não era um momento onde conversar seria
inadequado. O paciente já estava em ventilador mecânico, harmônico, saturando
bem, com pressão arterial e frequência cardíaca adequadas. Eu definitivamente
não representava um sem noção atrapalhando em uma situação com necessidade de
foco total.
A própria interpretação de que
estavam “com pressa” pode vir influenciada por minha contra-referência. Mas,
enfim, como estas coisas podem ser melhoradas? Há uma estranha cultura tomando
da Saúde onde existe cada vez menos diálogo e parceria. Isto se aprende em
treinamentos de equipe? Imagino que não...
O que vi no seguimento foi ainda pior. Passagem de acesso
venoso central com quebras grosseiras de barreiras de proteção (lavagem de mão,
paramentação completa) e, reforço, numa situação já sob controle, onde não
haveria justificativa. A Enfermagem ofereceu o aparelho de ecografia, que
sabemos aumenta a segurança do procedimento. Não foi utilizado.
Se havia foco necessário o suficiente para não se permitir
conversas paralelas, como explicar a liberação do paciente para angiotomografia
logo em seguida? Sabemos que transporte intra-hospitalar é um momento de muitas
vulnerabilidades e riscos. Normalmente, algumas coisas são sempre feitas antes,
por mais compensado que pareça o paciente, como avaliação de uma gasometria
arterial, para ver se a ventilação mecânica está mesmo adequada, e de um
simples RX de toráx.
Radiologista ligou para a UTI avisando: ausência de embolia.
Presença de pneumotórax bilateral!!! Diagnóstico que poderia e deveria ter sido
feito a partir do RX, sem o paciente sair da unidade intensiva. E o tratamento
disto - drenagem de tórax - obrigatoriamente imposto antes de qualquer
transporte.
A paciente foi salva. Desenvolveu estado vegetativo
persistente.
Tenho lido muito que, consciente ou inconscientemente, ao
absorvermos, calados estes eventos cotidianos, nós, profissionais da saúde,
estamos na verdade nos boicotando, além do sistema. Nunca o esgotamento
profissional esteve tão prevalente, em parte por estes fatores, e criando ciclo
vicioso de mais falhas na assistência à saúde. Eu agendei meu Curso de Suporte
Avançado de Vida em Cardiologia–ACLS para o próximo mês".
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