por Alfredo Guarischi, médico, Câmara Técnica de Oncologia do CREMERJ
Bairro Piedade, pouco depois da chegada do dia de Natal de 2012, uma criança de 10 anos foi baleada na cabeça. Foi levada para um hospital no Méier, que não fica longe. Aguardou longas oito horas até ser operada. Um dia depois foi transferida para outro hospital, também não distante. Teve a morte cerebral diagnosticada no quinto dia de pós-operatório.
Virou manchete: “uma sucessão de erros ou omissões podem ter agravado o estado de saúde da menina...”. Na página seguinte está o obituário de Dona Canô, de 105 anos, mãe de Caetano Veloso, Maria Betânia e outros tantos filhos. Não quis morrer num hospital, preferindo ficar em casa junto da família.
Na Guerra da Coréia, os feridos eram atendidos pelo Mobile Army Surgical Hospital - MASH. No Vietnam, transferir para um hospital equipado, com o uso de helicópteros, foi mais eficiente. No Afeganistão, a teleconferência foi incorporada. Aprendemos com as guerras, e na última olimpíada a tecnologia permitiu debates entre médicos em Londres e no Rio. Por um momento viramos primeiro mundo.
Os jogos acabaram, continuamos numa cidade partida, em guerra urbana e sem um sistema de saúde integrado. Não sei qual a gravidade da lesão provocada por essa bala perdida ou se o atraso na cirurgia mudaria o desfecho. Pouco importa, pois no Méier não houve nem a abominável escolha de Sofia, obrigada pelo nazismo a escolher um dos filhos para mandar para a morte em Auschwitz, ou perder os dois. Pai, mãe e uma criança, indefesos, não tiveram escolha, exceto aguardar diante de um sistema paralisado.
Acidentes não decorrem do acaso ou falta de sorte. Não existe acidente sem precedente e nenhum acidente tem uma única causa. Toda investigação deve buscar criar mecanismos de prevenção. Com esta ótica, busca-se entender a dinâmica dos fatos e como poderia haver outro desfecho.
O especialista faltara anteriormente. O que aconteceu? Com a proximidade do final do ano foi estabelecido algum plano alternativo? Até então tudo parecia bem, mas desta vez ocorreu uma tragédia que virou manchete de jornal.
Agora imaginemos a situação na qual estivesse operando outro paciente. Interromperia essa cirurgia? Alguém deveria remover a nova paciente para outro hospital? O chefe do serviço ou a direção do hospital poderiam ser contatados para ajudar na decisão?
As situações de emergência não são planejadas, mas previstas. Ocorrendo, o sistema deve estar preparado para identificar o problema, estabelecer as prioridades e agir. Faltas em serviços essenciais são indesejáveis, mas não impossíveis de ocorrer.
O treinamento em ATLS - Suporte Avançado de Suporte a Vida, ministrado em três dias, ensina as principais situações de emergência. Deste modo o não especialista aprende a reconhecer a gravidade do caso e atuar de modo a não piorar o que já está ruim. Quantos têm este treinamento em nossas emergências?
Todos os sistemas criam barreiras para evitar acidentes, mas estas muitas vezes apresentam imperfeições - buracos pequenos ou grandes. Naquela noite, os buracos, como de um queijo suíço, se alinharam permitindo ocorrer a tragédia. Novamente ocorreram falhas não só na ponta, mas no meio e no topo. As dificuldades do sistema de saúde não são recentes. É importante entender a dinâmica da situação de quando, onde, como e por que estes humanos falharam. Haverá uma próxima vez, não igual, mas semelhante, no público ou no privado. Devemos seguir o exemplo da aviação e da indústria nuclear, que têm buscado, em suas tragédias, uma fonte de aprendizado.
Existe um esforço das autoridades para melhorias na saúde, mas que não tem sido suficiente ou eficiente. Instituir o ponto biométrico pode punir a falta, mas não vai evitar suas consequências - o dano ou a morte. O Rio ainda continua distante de Londres. O sistema ficou paralisado – congelou – e acabou não tendo piedade dessa criança.
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