sábado, 14 de novembro de 2020

Como assim o melhor tratamento pode não ser o mais indicado?

Há algumas semanas atrás, fui envolvido em um caso de uma das maneiras que mais incomoda a nós médicos, parte ao menos: sem poder de fato mudar qualquer coisa. Quem pede não costuma ter culpa alguma, e fizemos o possível para esconder o desconforto...


Era um paciente nonagenário, com fragilidade funcional prévia, que vinha sintomático por angina. O tratamento medicamentoso era inadequado, insuficiente. Frente à suposta difícil compensação clínica, se optou por estudo de anatomia coronária. Encontrou-se lesão de tronco. Foi oferecida cirurgia cardíaca como único caminho.

Não restam muitas dúvidas de que cirurgia é superior à angioplastia ou tratamento medicamentoso na redução de mortalidade, infarto e controle de sintomas. Segundo texto de meu amigo cardiologista Luis Claudio, "a estimativa sumária do risco relativo da cirurgia para mortalidade é 0.73, o que implica em 27% de redução relativa do risco. Sabemos que a redução relativa obtida com tratamentos em geral tende a ser constante em diferentes tipos de pacientes. Porém, esta mesma redução relativa de 27% resultará em maior redução absoluta em um paciente de alto risco ou numa menor redução em um paciente de baixo risco. Se a mortalidade do paciente é 20% sem cirurgia, redução de 27% equivale a 5% de redução absoluta (Number Needed to Treat = 20, grande impacto); mas se a mortalidade do paciente for estimada em 5%, redução de 27% equivale a apenas 1.4% de redução (NNT = 71, pequeno impacto). Os trabalhos normalmente descrevem o risco relativo, pois este tende a ser constante em diferentes populações, tem boa validade externa. Mas o verdadeiro impacto na vida do paciente é a redução absoluta do risco, a qual varia com seu risco basal. Para um paciente pouco grave, o benefício deste tratamento mais agressivo não valeria a pena".

Entretanto, o paciente em questão era de alto risco, muito alto risco. Aí entra outra discussão: sobre o "preço" a ser pago pelo benefício. Novamente, nos utilizemos de conteúdos antigos do Luis:

"Imaginem um muito idoso, de alto risco também cirúrgico. Este terá uma cirurgia muito sofrida, com risco de complicações e até sequelas. Mesmo que venha a reduzir sua mortalidade, deve-se avaliar se queremos pagar esse preço com um procedimento de tamanha agressividade. Sim, nem sempre queremos pagar o “preço” da redução de mortalidade. Sabem o por quê? Porque saber que cirurgia reduz mortalidade não significa salvar a vida de todo paciente cirúrgico e deixar morrer todo paciente com angioplastia ou tratamento clínico. Não é algo dicotômico assim. Precisaremos tratar com cirurgia um grande número de pacientes para que 1 deles tenha a vida salva por ter feito cirurgia. Se o NNT da cirurgia fosse 20 (grande impacto), isto quer dizer que 19 de 20 pacientes não se beneficiariam desta redução de morte, mas pagariam o “preço” da cirurgia. Desta forma, medicina baseada em evidência não é seguir sempre o resultado de um ensaio clínico. Devemos computar o quanto a cirurgia é melhor e saber caso a caso se vale a pena pagar o “preço” da potencial benefício".

O paciente teve um pós-operatório complicado, mas superou. Por isso, e apenas assim, resolvi escrever sobre outros caminhos possíveis:

Ainda em 2016 foi publicado no New England Journal of Medicine o Excel Trial. Comparou cirurgia com angioplastia havendo justamente lesões de tronco, as mais temerárias. Evidenciou 4% de aumento de risco com o tratamento percutâneo (menos agressivo) em comparação à cirurgia. Em outras palavras, se 25 pacientes abdicassem do tratamento mais simples (menos sofrimento) e fizessem cirurgia, apenas 1 paciente se beneficiaria da conduta mais agressiva. No raciocínio de economia clínica, o preço do tratamento cirúrgico (mais sofrimento) é garantido. Porém o retorno do investimento não é garantido, há apenas 4% de probabilidade de retornar o investimento sob a forma de prevenção de desfecho cardiovascular (NNT foi aqui de 25).

O X da questão é que pacientes e familiares não recebem todas essas informações, na maioria das vezes. Pensando racionalmente, de posse das informações completas, muitos provavelmente escolheriam o tratamento menos agressivo. Lembrando ainda que o benefício de mortalidade da cirurgia cardíaca não se evidencia em curto prazo (algo importantíssimo para alguém com outra doença ameaçadora da vida em fase avançada ou em extremo etário). Lembrando ainda que a opção inicial por uma abordagem menos agressiva não impede de se optar, em algum momento, pela mais agressiva.

O que eu faria nesse caso, se pudesse ter intervido no momento certo:

- Otimizaria ao máximo o tratamento clínico, eventualmente até mesmo com inicial passagem por UTI, seja para tentar otimização em ambiente mais controlado, seja para descartar algum elemento oculto na passagem de informações e que eventualmente justificasse mesmo abordagem mais agressiva imediata (aparentemente não havia);

- Provavelmente acabaria recomendando stent(s) coronário(s) se não compensasse logo;

- Jamais entregaria a responsabilidade principal e decisão final para um cirurgião cardíaco, exceto alguns poucos que fazem também angioplastias. Casos complexos assim devem, na minha humilde opinião, ser conduzidos, com agilidade, mas não correria exagerada, por alguém integrador que coloque hemodinamicistas e cirurgiões cardíacos frente à frente, buscando uma decisão conjunta. Adiante da decisão conjunta médica, decisão compartilhada com paciente (idealmente) ou familiares, a partir de TODAS as informações e necessariamente levando em conta valores e preferências de quem está com a pele em risco, pode, ainda, contrariar o posicionamento dessa junta médica, sem justificar melindres de qualquer natureza, partindo-se para o melhor tratamento possível dentro do caminho escolhido (lembrem que não haveria garantias em nenhum dos caminhos). 

Quanto à agilidade, sem atropelo, se justifica, fora do contexto outro de síndrome coronariana aguda, por:

Desfecho Primário do Excel Trial

1. Preponderância de benefício da cirurgia cardíaca passar a ser percebida, mesmo nesses pacientes de muito alto risco do Excel Trial, a partir dos 24 meses;

2. Mesmo a partir da abordagem com angioplastia, que provavelmente nem mesmo em lesões proximais impacta em redução probabilística relevante de mortalidade, a maioria dos pacientes se manteve vivo ao final de 3 anos. Entenda-se, então, que o risco é, por definição médica, alto, muito alto - mas não apocalíptico. Em alguém nonagenário, concorre com o simples risco de se estar vivo. Passa a concorrer mais do que nunca ainda com "como quero estar, enquanto estiver vivo".

Por fim, não esperem de mim visão inculpadora contra esse ou qualquer cirurgião cardíaco na mesma situação. É mais do que natural o caminho ser a cirurgia quando o cirurgião cardíaco está posicionado inadequadamente no sistema: ele sabe fazer, seu tratamento é eficaz (até mesmo o melhor), e é o que ele sabe fazer.

No caso específico, o cirurgião ainda "ganhou". O paciente, aos noventa anos, superou a cirurgia (não sabemos se é o abnegado daquele "sorteio" que impacta em mortalidade) e teve alta hospitalar. Ocorre que não possuímos bola de cristal para largar sabendo.... Esse é o ponto nevrálgico da questão!

Havia um cardiologista clínico no caso que teria optado também pela recomendação de stent(s). Nesses microssistemas há outra característica bastante comum: hierarquia disfuncional nas equipes impede o debate franco e o contraditório. Nunca manifestou isso lá! 

Complemento 05/12/2020: Paciente permanece em casa, mas praticamente entre cama e poltrona. Perdeu bastante funcionalidade. 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

COVID-19 afetando o cérebro: estudo demonstra danos ao Raciocínio Clínico.

Era início de madrugada e recebi paciente na UTI.

SIDA, sem tratamento adequado, em mal estado geral. Atendido em casa pelo SAMU, entubado no ato do atendimento lá, trazido ao hospital. Chegou chocado. Bastante chocado.

História prejudicada, mas sugeria redução progressiva no nível de consciência em 36-48hrs, provável insuficiência respiratória aguda de causa neurológica e/ou choque. Mas como insuficiência respiratória e tubo orotraqueal lembram pulmão, e pulmão lembra COVID, foi transferido para área restrita. 

Na Emergência, solicitaram PCR para conoravírus. Frente ao rótulo "COVID-19", Dímeros-D foram, no piloto automático, incluídos.

Na UTI, RX de tórax normal. Mecânica ventilatória e oxigenação compatíveis com quadro de insuficiência respiratória aguda de causa não pulmonar - impressão de estarmos com um pulmão normal em ventilação mecânica! Avaliação ecocardiográfica e de membros inferiores sem sinais diretos ou indiretos de tromboembolismo venoso. Leucocitose e desvio. PCR elevada. Choque descompensado era o mais relevante naquele momento... Choque séptico? Culturas não haviam sido solicitadas, mas Dímeros-D não faltaram. 

Como parte da abordagem do choque grave, fui me preparando para passagem de acesso venoso central e linha arterial. Havia visto registro da Emergência apontando Dímeros-D elevados, "inicio Enoxaparina em dose plena". Perguntei se havia recebido o anticoagulante e a resposta primeira foi não. "Não façam então", avisei, enquanto me paramentava para os procedimentos.

Passagem de acesso venoso central guiada por ecografia transcorreu sem intercorrências. Houve tentativa sem sucesso de passagem de linha em radial. Após passagem em artéria femoral, evoluiu, como complicação da punção, um enorme hematoma. 

Havia recebido a Enoxaparina!

PCR para coronavírus, saiu, mais adiante, negativo. O paciente não tinha COVID!

Pré-pandemia, utilizávamos do valor preditivo negativo dos Dímeros-D em pacientes com probabilidade pré-teste baixa. Houvesse alta probabilidade clínica, nem considerávamos utilização de Dímeros-D, mesmo que a decisão fosse anticoagular até outro exame mais definitivo. O que acontece agora??? Danos do vírus ao Raciocínio Clínico?   

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Os Hospitalistas, o Novo Velho Mercado da Saúde, a Síndrome do Patinho Feio e o Cisne Negro

Aliança estratégica entre grupo de médicos e hospital é um dos pilares centrais da Medicina Hospitalista (MH). Entenda-se como aliança estratégica uma relação pautada em interesses mútuos, respeito e colaboração, através de práticas sustentáveis.

Há muitos entusiastas da MH desanimados após experiências frustras. Certa vez, escutei de um deles que “a MH no Brasil não tem futuro, somos os mais feios da turma [dos médicos, entre diversas especialidades]. Vou fazer otorrinolaringologia”. E fez!

Mas será que existe mesmo razão para uma Síndrome Coletiva do Patinho Feio?


Creio que uma boa parte dos leitores deve ser familiar com ambas as metáforas do título principal, mas vale uma rápida passagem por elas. A última nos remete à capacidade ou incapacidade humana de prever tudo, através do extremo: Cisnes Negros são imprevisíveis mesmo; a outra, à tendência comum de nos acharmos o mais feio da turma, injustificadamente.

Não há razões para complexo de inferioridade! O que existem são obstáculos e armadilhas, mais ou menos comuns entre a maioria das especialidades médicas, no que diz respeito à construção de aliança estratégicas saudáveis entre grupos de médicos e instituições da saúde. Vejamos alguns exemplos:

A ex-hospitalista que virou otorrino foi trabalhar em extensão de poderoso hospital da cidade desenvolvida inovadoramente dentro do mais tradicional Shopping Center da região. Empolgada com a ideia, vendeu seu consultório original, demitiu-se de um emprego e apostou todas as fichas no projeto visionário, com alto investimento financeiro. Em dois anos, o hospital agradeceu aos participantes médicos e comunicou que manteria apenas oferta de exames lá.

Não bastasse a volatilidade dos planejamentos estratégicos dos antigos hospitais, hoje grandes conglomerados da saúde, usualmente pautados em visões de curto, no máximo médio, prazo, ela poderia muito bem ter tido seu grupo trocado por outro da mesma especialidade, estivessem fazendo um belo trabalho ou não. Hospitais não raramente se comportam como clubes de futebol. Quem é fã do esporte bretão certamente já ouviu falar das “ovelhinhas” do Tite, atual técnico da seleção brasileira. O fato é que todos os técnicos têm os seus “bruxos”. É natural até, e em algumas situações útil. Mas muito comumente os critérios de seleção, sejam nos clubes ou nos hospitais, não valorizam o desempenho que deveriam...

Outro amigo dividiu recentemente comigo desafios na carreira. Faz especialidade focal como verdadeiro subespecialista (em oposição, por exemplo, ao cardiologista que atende predominantemente hipertensão arterial leve, competindo disfuncionalmente com clínicos e médicos de família). E está bem-sucedido: cheio de pacientes, ganhando o que considera suficiente e com intenso reconhecimento dos pares. Preserva área de atuação que poucos na sua especialidade fazem, o que confere diferencial competitivo. Faz sua prática hospitalar privada em alguns hospitais da região, mas gostaria MUITO, e há anos, de focar em apenas 01, estruturando equipe de forma a, supostamente, todos ganharem: seu grupo poderia se organizar melhor em turnos e finais de semana, aprimorando qualidade de vida. Em troca, algum desses hospitais – nenhum deles possui sobreaviso oficial da área de atuação ou mesmo da especialidade – poderia ganhar cobertura 24/7. Fantástico, não?

Esse desejo de focar em apenas um hospital já perdura por anos. Conta que há quase uma década atrás recebeu convite para estruturação de escala de sobreaviso em um deles, onde seu grupo ganharia algumas bugigangas e penduricalhos diretos, como direito à estacionamento, além de vantagens indiretas. Não considerou interessante, já era e segue bem-sucedido. Já o hospital permanece até hoje sem sobreaviso oficial, contando com a sorte - nada que ponha em risco o selo de qualidade também... Recentemente, ele recebeu o mesmo tipo de proposta “caracu” de outro hospital, mas com traços de crueldade: ameaças veladas de perder o que já tem.

Como estes hospitais funcionaram ao longo de anos sem sobreaviso oficial? Ao cabo, sempre dão um jeitinho! Certamente outros grupos se aproximaram ao longo do período também, eventualmente preenchendo os buracos de quase sempre, temporariamente iludidos, até aparecer algo melhor ou serem trocados. Não como costuma ser em mercados funcionais, onde é saudável o movimento de profissionais entre empresas, ocorrendo com os buracos preferencialmente sempre tapados, e sem predomínio do 'aparecer algo melhor', que, na saúde, é sinônimo de alianças naturalmente frágeis.

Outro exemplo para que não se pense existir um "defeito de fábrica" específico da MH brasileira: avaliem a realidade nacional das Medicina Intensiva e de Emergência. Trabalho em um hospital com 100% de intensivistas titulados e com rotina organizada (até o início da epidemia, ao menos). Entretanto, a realidade é heterogênea, mesmo em Porto Alegre. No Brasil, há predomínio quase absoluto do contrário em várias regiões. Muitas vezes, o plantão na UTI é bico para que especialistas focais (que não deveriam trabalhar lá), tenham uma renda fixa que os mantenha "por perto", auxiliando para que exerçam no respectivo hospital sua atividade "principal", (in)formal, cheia de elementos muito parecidos a "trabalho voluntário", havendo tentativa de compensação a partir da oferta dos plantões: um sistema que se organiza, desde que o mundo é mundo, a partir da necessidade dos hospitais e, muito questionavelmente, dos médicos, bastante distante das necessidades dos pacientes, em especial dos mais vulneráveis e complexos. Pobre desses pacientes numa UTI assim, por exemplo.

Nunca me esqueço também de experiência pessoal onde a ideia era, muito em tese, estruturar uma UTI de intensivistas titulados e diferenciados. Momentaneamente iludido e empolgado, estive, como coordenador, com algumas pessoas na porta para entrar, gente cuidadosamente selecionada. Uma delas era quem eu queria como responsável maior pela minha pretensa rotina, chama-se Lívia - profissional completa, do ponto de vista técnico e humanístico. Tudo dependia da confirmação de uma nova política salarial. Escutei da minha liderança: "bota pra dentro e depois se vê isso. Diz que virá o aumento e o amanhã é outro dia". É como tradicionalmente ocorre! Criam-se expectativas, não há preocupação em cumprí-las. Na pior das hipóteses, o problema é tamponado por um tempo... 

Quem nutre a ideia de um "milagre hospitalista" nesse cenário, está equivocado, a não ser que o objetivo seja engano coletivo, como vendendo aulas de fisiologia hospitalista para locais sem sequer a anatomia do modelo, o que, partindo de gente qualificada, sempre cobre lacunas e, parcialmente, se justifica então. Eu nunca nutri esperança de milagre em larga escala!

Uma coisa que já aprendi com o Brasil é que ele nunca é maravilhoso, nem tão feio, como se pinta. Sequer é muito diferente da maioria dos outros países também. Assim como para a boa Medicina Intensiva ou de Emergência, é preciso a MH investir nos lugares e nas pessoas certas, torcendo sempre por uma ajuda do acaso. Se é que o certo para você não é justamente o modelo tradicional, com uma informalidade e falta de alinhamento com o hospital que por vezes facilita a vida do médico. Cisnes Negros são, por definição de Nassim Taleb, imprevisíveis e raros, compreensíveis só depois de ocorrido. MH no Brasil não é Cisne Negro, nem mesmo ilhas de exceção, a essas alturas. Mas há barreiras e dificuldades, e não são poucas. A verdadeira Medicina Hospitalista está apenas um pouco menos acessível por aí que as boas UTI’s, talvez até mesmo mais prevalentes que as verdadeiras Salas de Emergências, e não muito mais vulneráveis que grande parte das especialidades médicas, excetuando-se as que constantemente figuram no topo da lucratividade. 

Não sou capaz de garantir para ninguém quando o prognóstico é bom, mas já aprendi muito sobre quando o prognóstico é ruim. A velha ideia de que, por exemplo, o Time de Resposta Rápida será transição para MH, quando se percebe nitidamente a atmosfera tradicional, é uma das tradicionais falácias. Houve um hospital de São Paulo que, nos primórdios do movimento, há quase 10 anos, tentou forçar um protagonismo. Até hoje não tem hospitalistas. Meu hoje amigo, Antônio dizia: "transição, transição". Para mim era óbvio: não seria. Nunca aconteceu. Diferente do Hospital da Cruz Vermelha do Paraná, onde, desde que coloquei os pés lá, percebi na Direção que, mesmo que não desse certo, eles tentariam. Eles sequer precisavam do meu empurrão...

Todos as histórias são verídicas. Algumas referências foram trocadas para preservar os envolvidos.

domingo, 27 de setembro de 2020

COVID-FREE e como mudam os cenários, mas não a tendência contemporânea de hipérboles e outras formas de falta de transparência.

Há empresas anunciando certificação COVID-FREE. O nome em si não me incomoda, desde que os textos de apoio busquem reestabelecer o equilíbrio entre realidades e desejos, certezas e incertezas. 
Recentemente, organização certificada COVID-Free foi anunciada como pronta para oferecer serviços de forma segura e sem oferecer riscos de exposição ao vírus. Não desejo aqui estender muito discussão a cerca da veracidade e reprodutibilidade disso, deixo para reflexões... Apenas acho que, quem estuda ou já estudou segurança do paciente a fundo sabe que 100% de segurança sem consequências negativas não intencionais muito pouco existe. Quero então discutir os efeitos desse tipo de linguagem estilo "shoptime" na nossa cultura...

Como a nossa linguagem molda a visão geral sobre qualidade e segurança do paciente e a credibilidade do movimento?

Considerei a validade de reaquerer o assunto depois de ver publicação científica de hospital da Harvard que conheci pessoalmente e é exemplo em qualidade e e segurança do paciente. Ao mesmo tempo que apontam a possibilidade de taxas de contaminação muito baixas através de rigorosas medidas de controle de infecção, descortinam, mais uma vez, a quase inexistência do "risco zero" em sistemas complexos. São muito provavelmente inexistentes mesmo, se colocados na equação os riscos interdependentes. Ou então não são sistemas complexos. Ou então são sistemas complexos mortos ou ilusórios, que perdem a desconfortável complexidade das não-linearidades e outras coisas que acabam inconscientemente ignoradas, porque não as controlamos como gostaríamos. 

Alguns poderiam argumentar que ilustrar como "risco zero" serve para contraste apenas, reforço semântico, em oposição ao mundo sem as intervenções, que é um absurdo, temível, impuro, sujo. No entanto, é falaciosa a ideia de que a transmissão na vida real é evento tão determinístico e no corner oporto. Não é! Faz grandes estragos pela impacto escalável a medida em que mais e mais pessoas não expostas aos indivíduos infectados, entre outros fatores de magnitude de efeito menor. 

Aliás, no caso da COVID-19, a transmissão fora de espaços que favorecem controle, como hospitais e clínicas, ocorre como normalmente são as coisas na natureza, mesmo as transmissíveis e capazes de resultar em extraordinário desequilíbrio global:

Transmissão com contatos domiciliares para adultos e crianças ocorre na faixa de ~ 14-17% e ~ 4-7%, respectivamente (https://doi.org/10.7326/M20-5008). Ambiente fechado, contato significativo, sem controle maior nenhum!

Considerando ainda que comumente há uma grande cascata de eventos entre exposições e danos, além desse fenômeno da probabilidade, talvez entendemos melhor a razão pela qual pessoas absorveram tão facilmente crenças como "distanciamento não funciona" ou "máscara não serve para nada", ao menos tempo que alguns desconfiam que rigorosas medidas de controle de infecção são apenas desculpa para vender selos. E não são! Mas, se não ajudarmos as pessoas na compreensão de cenários complexos naturalmente não maniqueístas, irão desistir de fazê-lo e apenas escolher lado a partir de premissas e heurísticas. Não educamos de verdade! No mundo real das epidemias, com muita disciplina, colhemos grandes benefícios somando pequenas reduções absolutas de risco, sem garantias.

Se alguém no planeta possui verdadeira solução risco zero para viabilizar interações sociais, faria sentido manter todo o alarme mundial e protelar os danos secundários às medidas sugeridas pela OMS? Ou não é isso e caímos novamente na velha e complexa equação dos custos e benefícios das coisas, que inclusive deve transformar conclusões de acordo com a característica de quem procura hospitais e clínicas, independente de fazerem eles o melhor controle do mundo? Em outras palavras, o mesmo risco, mesmo que muito pequeno, deve ser encarado diferente em quem necessita de um cateterismo no curso de infarto agudo do miocárdio (benefício >>> risco) e em quem buscaria um hospital para um (quase sempre questionável) check-up cardiovascular...

Citações e outros materiais complementares abaixo: 


"The blind desire for 'zero cases, zero deaths' is not conducive to scientific prevention and control, instead, seeking truth from facts and early detection and reporting are the basis and premise of scientific prevention and control" - Yang Zhanqiu, a Wuhan-based virologist

Trapped in the “zero-risk” society and how to break free

Innocence and Justice in Safety

Risk In Perspective: Zero Risk Is an Impossible Dream

Life with coronavirus can’t be risk-free, but we can minimize harms

“Let us remember and we've seen there is no 'zero risk' in any environment, we need to try and reduce those risks to the absolute minimum and be able to mitigate any negative impacts.” - Tedros Adhanom Ghebreyesus, WHO 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O lado oculto das contas hospitalares!

Esse vídeo é assustador:


Aqui no Brasil não acontece igual, mas parecido:

Reaquecemos denúncia da Época em 2016
Mas é mais um assunto que quem se importa não apita nada e cada vez menos...

terça-feira, 1 de setembro de 2020

domingo, 30 de agosto de 2020

Em vídeo no fio, norte-americana ilustra a bagunça na qual se transformou seu sistema de saúde com a epidemia: FICOU IGUAL AO NOSSO NO BRASIL!

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O que deve ser mais assustador: medo de COVID ou de coloproctologista voraz?

 Essa situação absurda me foi relatada essa semana:

O risco do pacote todo envolvendo uma colonoscopia (do preparo, passando pela sedação e o procedimento propriamente dito, até as complicações tardias) é estimado em aproximadamente 3 mortes para cada 100.000 intervenções. De fato um risco bastante baixo!

Pela estimativa mais recente do NNT Group, a fatalidade com COVID é de aproximadamente 0.5 para cada 100 pessoas infectadas. 

No entanto, o cenário do COVID não é atrelado à atitude ou ação médica deliberada, simplesmente desnecessária. 

Refletir sobre essa situação em faz automaticamente refletir sobre outra: onde foi parar o movimento de segurança do paciente que, como médico assistencial, foi um dos pioneiros no Brasil? 

Com ele onde está (e dia-a-dia mais), insistimos em questões cuja capacidade de real gerenciamento é questionável e quase não se fala em Overuse, uma vez que vai de encontro do modelo de financiamento preponderantemente vigente no setor saúde...

Tenho mais medo da probabilidade menor a partir de profissional voraz do que de COVID. Vem disfarçada de boa intenção, é mais traiçoeira...


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ciência limita, por princípio, liberdades individuais????? Fala sério gente!

Não consigo entender qual a relação que estão buscando estabelecer entre "rigor científico" e liberdades individuais. Haveria relação e importância se uma coisa interferisse NECESSARIAMENTE na outra. Mas podem e devem ser paralelas.... Isto simplesmente traduz a antiga confusão entre Medicina Baseada em Evidências (MBE) e receita de bolo, quando deveria ser vista como bússola norteadora. Ou apenas retórica para tumultuar o momento mesmo. 


Obviamente há cientistas e médicos ligados à MBE autoritários!

Entretanto, não consta nas bases teóricas nem da Ciência nem MBE nada que comprometa liberdades individuais, nada... Aliás, os referenciais teóricos para não confundirmos 'norte' com trilhos ferroviários sem nenhum daqueles equipamentos usados para permitir transitar de uma linha para outra estão disponíveis desde os primeiros textos sobre MBE, para quem quiser entender. 

Alguns tentam sugerir dois possíveis caminhos então: o do rigor científico, que buscam caracterizar como preciosista e perigoso, e o que disfarçam de "melhor disponível", sugerindo ser igualmente científico. O fazem através de retórica que, fosse verdadeira, seria o caminho por mim sempre escolhido e indicado. Mas não bastasse a história da medicina estar repleta de situações onde se percorre o segundo caminho e o predomínio probabilístico é de danos, muitas vezes com essa conclusão depois de muitos anos expondo as pessoas, foge-se da verdadeira e necessária discussão:

Do lado dos que defendem o tal rigor e preciosismo (na linguagem científica chamamos orgulhosamente de ceticismo) não deveria existir limitação ao outro caminho, se concordarmos todos com a preservação das liberdades individuais, algo como já dito pelo economista Ludwig von Mises em Planned Chaos:

“Science is competent to establish what is. It can never dictate what ought to be.”

Não existindo a limitação ao outro caminho (partamos da suposta defesa mútua de liberdades individuais), nem faz sentido disputar o que é verdade para uma pessoa ou grupo. A Ciência bem aplicada é justamente para desviar disso.

A única disputa deveria ser para garantir liberdade de escolhas, caso alguém, de qualquer lado, flertar o autoritarismo. Podendo ser uma luta "de todos os lados" então! E certamente não é exclusiva de ninguém! À Ciência cabe brigar, tão somente, pela parte da Informação do binômio Decisão Informada. Informação desprovida de achismos e vontades. Informação que simplesmente reconheça a incerteza! Informação honesta para a decisão que for! 

O máximo que a Ciência pode é discriminar absoluta incerteza de provável benefício, e basta. Aceitar a incerteza não limita liberdades individuais, minimiza charlatanismo. Também não restringe, minimiza. Compete a outras instâncias a tarefa de restringir ativamente. Mas, dentro da mesma ótica de quem classicamente defende mais acirradamente as liberdades individuais (a minha, diga-se de passagem), cabe comprar outro elemento do pacote ideológico: o de que o Estado ou os fundos coletivos não precisam financiar escolhas individuais desprovidas de comprovação científica bem feita. Senão é boicote a quem pensa diferente, não posicionamento contrário...

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Guardemos os "eu acredito" para nossas bem-vindas atividades de cunho religioso ou espiritual. As protegerão da rigidez necessária da Medicina.

eu acredito, tu acreditas, ele acredita, nós acreditamos, vós acreditais, eles acreditam
O ACREDITAR, em circunstâncias médicas, através de substratos para conclusões advindos exclusivamente de observações pessoais de fenômenos biológicos complexos e, portanto, naturalmente seletivas e limitadas (para muitos, sabemos, um exercício de humildade difícil de aceitar), não é exclusividade dos atuais defensores de "Kit COVID", seja lá como queiram compô-lo.

Observamos médicos enfurecidos com defensores dessas [até o momento] fantasias. Certamente convivem com fantasias da mesma natureza em suas especialidades e, muito provavelmente, em suas próprias práticas...


O mesmo tipo de exercício mental mal conduzido é feito até por colegas que se identificam com a iniciativa Choosing Wisely. Em passagem de plantão de uma UTI COVID, essa semana, profissional "less is more" disse:

- "Ficou [um paciente] com medidas de suporte, não entrei com Dexametasona porque não acredito naquele estudo".

Complementou dizendo que já viu muitas vezes o mundo dar voltas, que acreditava ser necessário replicar os resultados.

Ilustra confusão entre valorização da incerteza e certeza travestida de incerteza. Não existem verdades absolutas em Ciência. Mas os “negadores exagerados” são tão equivocados quando os "crentes impenetráveis". O problema, no campo da saúde e outros tantos, está em ACREDITAR além das nossas verdadeiras possibilidades, para questões onde existem riscos consideráveis.



Se ceticismo está no cerne do pensamento científico, justificando a necessidade de dados empíricos para comprovar um fenômeno e não nos enganarmos. E mesmo reconhecendo a condição ideal de replicação dos experimentos (como espertamente deseja o colega). Há um ponto a partir do qual, mesmo não se podendo dar "certeza absoluta e permanente" - conceitualmente isso sequer existe, gente! -, devemos aceitar o norte científico disponível e as suas "verdades momentâneas". Não precisamos impor a todos os pacientes (por diversas possíveis razões que não vêm ao caso aqui), podemos, e muitas vezes devemos, manter o ceticismo. Entretanto, discriminar razoavelmente esta complexa linha entre evidências insuficientes e aceitáveis está no âmago da Medicina contemporânea - se não para o completo abandono de práticas sem demonstração de eficácia, para conversas mais francas com nossos pacientes, sem promessas descabidas.

Precisamos entender quando evidências são e não são "confirmatórias". HÁ EVIDÊNCIAS PARA SE ACREDITAR EM QUALQUER COISA - o segredo está na discriminação do grau de incerteza. O entre aspas têm inúmeras explicações, entre elas a necessidade de idealmente revisitarmos evidências estabelecidas em momento onde o cuidado era diferente do atual. A magnitude de benefício pode não ser mais a mesma. E por aí vai...

Parte da razão pela qual alguém não ACREDITA em medicação validada em ensaio clínico de qualidade aceitável (Recovery Trial) é a mesma visão não probabilística de mundo que justifica a defesa do "Kit COVID". Ajuda a entender porque criticamos as fantasias dos outros, mas sustentamos as nossas.

Da mesma forma que não conseguimos enxergar o efeito da maiorias das medicações que não funcionam, atribuindo a elas o efeito de outras coisas (fatores de confusão - pode ser simplesmente tempo), não seríamos capazes de discriminar o efeito benéfico isolado da Dexametasona. Tentar fazê-lo é buscar frustração desnecessária, pois de fato tratamos pacientes para beneficiar apenas um de um grupo muito maior que também melhora. Assim como há os que morrem a despeito de nosso tratamento eficaz. É desse jeito! Simples na explicação, impossível de nossos olhos discriminar a derradeira explicação de cada desfecho.

sábado, 18 de julho de 2020

Como destruir um sistema de saúde e colocar a culpa no outro...

Engana-se quem acha que toda discussão técnica da Saúde tem necessariamente relação direta com Política ou Sistemas Econômicos. Mas muitas podem indiretamente representar profecias político-econômicas autorrealizáveis:

Essa semana percebi em redes sociais manifestações de dois médicos, ambos defensores das Cloroquinas/Ivermectinas, ambos bastante ambivalentes por atuarem profissionalmente justamente no cenário que tanto criticam.

Para o primeiro, o problema do mundo está na saúde suplementar e no mercado. Seu principal sustento vem de um plano de saúde popular. Acha que apenas o SUS pode funcionar bem.

Para o outro, a personificação do mal está nos sistemas "socializados" e, portanto, no SUS. Trabalha em hospital universitário público, o mesmo que o meu.


Paradoxal é a constatação que não há modelagem de assistência à saúde que suporte o financiamento irracional de fantasias em larga escalas (leia-se terapias sem mínima comprovação de eficácia), seja em SUS ou na saúde suplementar dos planos para cidadãos médios/comuns, como eu e provavelmente tu.

Fossem qualquer um desses cenários conduzidos predominantemente por médicos a imagem e semelhança de qualquer um dos dois, ambos, mais cedo ou mais tarde, sucumbiriam/rão. Então, talvez o sistema que tanto criticam seja mais um espelho deles próprios do que predestinado a não dar certo a priori.

Uma desses medicamentos sem comprovação de eficácia custou aos cofres públicos de uma cidade catarinense de 200.000 pessoas R$ 4,4 milhões, fora os custos indiretos por estrutura de distribuição. Precisa explicar melhor como apostar em incerteza muito acima do aceitável pode lesar?

Para ambos os médicos, só restaria a defesa de planos de saúde extraclasse, caríssimos, cujas mensalidades já incorporassem “qualquer coisa”, no estilo parque da Disney com Fast Pass. Infelizmente, nunca serão solução para aplicação em massa. 

Pacientes que não compreendem e criticam seus planos de saúde, também cumprem profecias autorrealizáveis.

Esses médicos e esses pacientes JUNTOS, literalmente f... qualquer sistema de saúde não elitista, seja público ou privado. Para depois encher nossa timelines de lamentações ou teorias de como fazer melhor.

domingo, 12 de julho de 2020

Criticidade verdadeira exige valorização da auto-crítica.

Desde os tempos em que eu discutia mais Conflitos de Interesse, é fácil de perceber duas posturas:

- Não aceitação completa da possibilidade das influências externas sobre a corporação médica com magnitudes minimamente valorizáveis;

- Aceitação da influência sobre terceiros, mas não sobre si mesmo (eu já chamei isso de O eu ético, o outro não).

A postura de aceitar a influência sobre si mesmo eu raramente vi. Talvez seja apenas uma manifestação da pouca capacidade de auto-crítica tão prevalente em nós humanos.

Recentemente publicamos um trabalhinho que rendeu mídia espontânea.
Jornalista publicou matéria cujo link de divulgação destaca foto de Bolsonaro. No texto, dando a entender ser conclusão de nossa pesquisa, afirmou que polarização política promove a irracionalidade médica do contexto atual. Deveria ter escrito que era a "sua" interpretação...

Não concordo que a irracionalidade seja novidade da epidemia - pode ter sido potencializada.
E até acho que a polarização política tem relação com isto mesmo.

Entretanto, nosso estudo, de caráter absolutamente exploratório, traz uma SUGESTÃO* de irracionalidade médica excedente - o que chamamos lá de "efeito pandemia". Não tem capacidade de afirmar que esse excedente é real, e muito menos de apontar fatores associados. Nosso objetivo, a priori, era promover reflexões, e nesse aspecto, o que chamei de trabalhinho ganha enorme relevância.

* Na amostragem como foi feita, médicos responderam perguntas. Qualquer questionário é apenas uma amostra de perguntas possíveis, cujas respostas não passam de uma outra amostra das atitudes e experiências dos respondedores para cada uma das questões. Em nossa avaliação, comparamos Hidroxicloroquina com Vitamina C em sepse. É possível que o menor apego dos profissionais à Vitamina C possa simplesmente refletir pouco conhecimento da questão entre não-intensivistas.


Pois quando começamos a receber críticas de que o artigo tinha viés ideológico, sugeri o uso da análise acima como parte da explicação. E que, e aí não foi sugestão (as razões estão em nosso regimento e código de condutas), fugíssemos das discussões eminentemente políticas estando a marca Choosing Wisely Brasil de alguma forma associada. A neutralidade, inclusive política, é um mito, mas, enquanto coordenador da iniciativa, não abro mão do permanente exercício de busca, mesmo que utópico. Nosso foco de discussão na CWB é saúde, secundariamente evidências científicas e escolhas possíveis.

Achei muito interessantes respostas de alguns:

"O mais importante é nosso artigo está lá";

"O jornalista pode notar que ressalvas foram feitas e não mais nos prestigiar".

Aqui é importante parar e destacar: Quando reclamamos que terceiros não atuam assertivamente calibrando interpretações daqueles que escrevem sobre seus resultados, favorecendo spins positivos e outras formas de hipervalorização de achados ou interpretações desproporcionais, é importante lembrar, para acertar o tom, que não fazem por mal - tal como nós não fizemos.

É muito possível que apenas estejamos todos em meio que não valoriza o feedback negativo. Em ambiente onde nossas ideias precisam parecer mais "ideologicamente completas" do que são para emplacar na mídia, sempre sob a perspectiva parcial de alguém então.

E, se esse diagnóstico estiver certo, mesmo que incompleto, devemos assimilar que o exercício de autocorreção pública e sem firulas não seria apenas aconselhável, e sim obrigatório - o único ponto de partida para movimentos que desejem promover nos outros mudanças em questões que são sistêmicas e incluem a todos - não há eles errados e nós imunes.

Não apontamos limitações de nossas produções científicas e intelectuais porque a cultura é a mesma de outros tantos setores. As coisas devem ser atrativas, sexies, quando não apelativas. É essencialmente isso que precisa mudar.

   

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Perigos dos líderes inflexíveis em iniciativas que promovam decisão compartilhada.

Passei a refletir sobre a questão após leitura despretenciosa do artigo abaixo:
Obviamente carisma não é uma característica negativa por si só, mas pode ser perigosa quando o líder se resume a isto. Ou quando o carisma e necessariamente alguns fatores associados passam a predominar, mesmo que por momentos ou situações.

Segundo o texto, líderes carismáticos tendem a ser indivíduos com auto-imagens muito positivas e muito orgulhosos dos temas e conclusões sobre os quais estudam ou refletem com frequência. Podem ainda ser pessoas com auto-confiança e convicções pouco abaláveis. Percebem a realidade unicamente através do prisma de suas próprias visões e as transferem, mesmo que através da sedução de admiradores - sem exatamente forçar então.

Neste cenário, o líder pode simplesmente impor crenças e modos aos seus recalcitrantes seguidores, a despeito de certos ou errados. Não há espaço para dúvidas ou dissidências. Uma perspectiva alternativa, baseada na institucionalização do feedback é raramente considerada. A influência é, via de regra, unilateral, fluindo do(s) líder(es) para os subordinados - é isso que passam a ser, subalternos mesmo. Problemas se tornam inevitáveis quando estes líderes desenvolvem convicções sobre só existir um único jeito de fazer as coisas - o seu próprio.

Qual a relação com Choosing Wisely e decisão compartilhada?

Uma coisa é criticar Cloroquina ou qualquer outra intervenção médica momentaneamente fantasiosa. Outra, bem diferente, é entrar em guerra com pacientes diretos ou potenciais ao defenderem ou optarem por fantasias - Cloroquina, Ivermectina ou qualquer outra. Poderia ser stents em pacientes assintomáticos, um debate de mais de uma década entre realidade e ilusão. E, como líderes carismáticos, acabar disseminando mais ódio do que informação necessária. É potencialmente muito injusto (muitos de nós costumamos ter nossos amuletos também), mas não apenas: é incompatível com decisão compartilhada e autonomia das pessoas;

Uma coisa é criticar uma determinada abordagem, como massoterapia, acupuntura ou Swan Ganz argumentando que, cientificamente, não se deve afirmar que cura ou melhora o prognóstico médico da doença. Outra coisa, bem diferente, é satanizar essas intervenções, que sequer poderiam ser chamadas de pseudociência quando quem as oferece/utiliza não lhes imputa propriedades desproporcionais ou descabidas. E, como líderes carismáticos, acabar disseminando mais estilo próprio do que informação útil e que auxilie na escolhas de terceiros;

Uma coisa é querer transformar, na marra, qualquer coisa em uma intervenção médica quando não é, como certas práticas espirituais ou rituais sociais variados. Outra, bem diferente, é querer proibir para os que gostam porque você não gosta. E, como líderes carismáticos e influentes, acabar disseminando mais preconceito do que informação transformadora.
Gostos e preferências, hobbies e manias não necessariamente devem ser discutidos com Pubmed eternamente aberto, intervalos de confiança, significâncias estatísticas e NNT's/NNH's....
E é esta outra coisa que os perfis 'donos da razão carismáticos influenciadores', quando fazem, "fazem bem". Porque, quando pregam, alimentam tribo, ao mesmo tempo que bloqueiam diálogos externos. Transformam-se, então, em multiplicadores de si próprios e, muito naturalmente, em barreiras para decisões verdadeiramente compartilhadas e em risco escalonável para autonomias alheias. O risco final é o da transformação de movimentos que, mesmo quando confundem com comunicação interna geralmente harmoniosa, e possam dizer que defendem a Ciência, culminam em cultos pouco maleáveis, justamente uma característica da pseudociência:






















Pensar e fantasiar não pode jamais ser considerado ilegal*, mesmo quando errados! A pior proibição é a do pensamento, passo essencial do exercício de autonomia, bem ou mal conduzido, bem ou mal exercido! Dificulta o trabalho de quem defende o método científico, mas faz parte...

* Profissionais da área também podem, eles próprios, optar por práticas ilusórias, e seria problema deles apenas. No entanto, quando o fazem profissionalmente (a até mesmo algumas postagens públicas em redes sociais podem caracterizar tentativa de convencimento por argumento de autoridade e, portanto, profissional), deveriam ser alvo de investigação, senão legal, ética - pelos respectivos conselhos profissionais. Ainda assim, atmosfera totalmente inculpadora deve ser evitada, para manutenção de Cultura Justa: não faz sentido queimar bruxos cloroquiners, como na Inquisição, no mesmo contexto cultural onde o próprio CFM ainda avaliza homeopatia, cardiologistas colocam milhares de stents desnecessários e promotores de bem-estar (wellness) hipertrofiam valor universal e inegociável de dietas específicas (como na seita low-carb) ou do estilo/intensidade de práticas esportivas com base em gostos pessoais, e por aí vai... Calma!


"Já ouvi um cético falar de modo superior e desdenhoso? Certamente. Às vezes até escutei, para minha posterior consternação, esse tom desagradável na minha própria voz. Há imperfeições humanas em ambos os lados dessa questão. Mesmo quando é aplicado com sensibilidade, o ceticismo científico pode parecer arrogante, dogmático, cruel e sem consideração para com os sentimentos e as crenças profundamente arraigadas dos outros. E deve-se dizer que alguns cientistas e céticos diligentes aplicam essa ferramenta como se fosse um instrumento grosseiro, com pouca finura. Às vezes é como se a conclusão cética viesse em primeiro lugar, como se as afirmações fossem rejeitadas antes do exame da evidência, e não depois. Todos nós acalentamos as nossas crenças. Em certo grau, elas definem o nosso eu. Quando aparece alguém que desafia o nosso sistema de crenças, declarando que sua base não é suficientemente boa - ou que, como Sócrates, faz perguntas embaraçosas em que não tínhamos pensado, ou demonstra que varremos para baixo do tapete pressupostos subjacentes de importância capital -, tal fato se torna muito mais do que uma busca do conhecimento. Nós o sentimos como um ataque pessoal." Carl Sagan, O Mundo Assombrado Pelos Demônios, cap. 17 - O casamento do ceticismo e da admiração.




quarta-feira, 17 de junho de 2020

Por favor, não diga que avisou do Corticóide!

É claro que tanto eu quanto colegas da Choosing Wisely Brasil temos nossos palpites sobre drogas para o COVID-19. Muitos até não, pelo histórico das doenças virais semelhantes.

Entretanto, o bom senso indica não contar aos quatro ventos antes de evidências positivas de suficiente e boa qualidade surgirem ou, pelo menos, um corpo bem consistente de evidências preliminares. Por quê?

Em parte, já tentei explicar aqui. Para quem lê em inglês, sugiro fortemente esse livro também, com linguagem acessível a quem não é profissional da saúde:


Ainda não quero entrar no mérito da Dexametasona para COVID-19 em si, pois aguardo publicação para ler o estudo na íntegra. Devo confessar que "ansiosamente" - já sinto ser possível "torcer por uma medicação"....

Mas, por favor, não diga que avisou do Corticóide!


Não havia motivos para indicar uso rotineiro antes, simples assim.

Era o que diziam UCSF e Brigham and Women's Hospital, se é que isso importa muito.

















O fato é que não havia evidências suficientes, diretas ou indiretas. E existe uma discussão sobre riscos bastante relevante:


SARS: systematic review of treatment effects. PLoS Med. 2006;3(9):e343. CONCLUSIONS Despite an extensive literature reporting on SARS treatments, it was not possible to determine whether treatments benefited patients during the SARS outbreak. Some may have been harmful. Clinical trials should be designed to validate a standard protocol for dosage and timing, and to accrue data in real time during future outbreaks to monitor specific adverse effects and help inform treatment.
Corticosteroids as adjunctive therapy in the treatment of influenza. Cochrane Database Syst Rev. 2016;3:CD010406. MAIN RESULTS We identified 19 eligible studies (3459 individuals), all observational; 13 studies (1917 individuals) were suitable for inclusion in the meta-analysis of mortality. Data specific to mortality were of very low quality. Reported doses of corticosteroids used were high and indications for their use were not well reported. On meta-analysis, corticosteroid therapy was associated with increased mortality (odds ratio (OR) 3.06, 95% confidence interval (CI) 1.58 to 5.92). Pooled subgroup analysis of adjusted estimates of mortality from four studies found a similar association (OR 2.82, 95% CI 1.61 to 4.92). Three studies reported greater odds of hospital-acquired infection related to corticosteroid therapy; all were unadjusted estimates and we graded the data as very low quality.
Corticosteroid Therapy for Critically Ill Patients with Middle East Respiratory Syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 2018;197(6):757. CONCLUSIONS Corticosteroid therapy in patients with MERS was not associated with a difference in mortality after adjustment for time-varying confounders but was associated with delayed MERS coronavirus RNA clearance.
Mesmo nas condições clínicas mais próximas (para COVID-19 especificamente quase tudo é, obviamente, muito novo e controverso), onde o Princípio de Complacência deve ser aceito e empregado, a dúvida era válida e não encorajava o uso rotineiro de qualquer corticoide. Em meta-análises de SARA, até o início da epidemia, eventual positividade discutível veio sempre puxada por estudo antigo de 1998, cujos resultados nunca mais foram igualmente replicados. Subgrupos mostraram aumento de mortalidade. O fato é que não utilizamos, nos bons centros do Brasil e do mundo, corticoide de rotina em SARA, não sejam hipócritas! Presenciei a utilização do Protocolo de Meduri por um curto período durante minha residência, nem lembro bem a razão. Foi em 2003. Nunca mais depois.  

De qualquer forma, o protocolo de Meduri se utilizava de cerca de 4x mais corticoide ao dia (calculada equivalência) do que o estudo que aguardamos da Dexametasona em COVID-19, por período cerca de 3x maior. O Uptodate já não recomenda ele e sim o equivalente à aproximadamente o dobro da dose do RECOVERY Trial pelo dobro do tempo (menos que Meduri, então) - para casos selecionados, reconhecendo o benefício incerto fora situações bastante específicas, e desestimulando nas situações de SARA não grave.

Ou seja, estamos falando de evidências comparáveis, mas, bem ou mal, agora uma absolutamente inédita e específica, com dose e tempo de tratamento muito pouco comparáveis. No tal Protocolo de Madri, falam em "pulsoterapia" (risco ↑↑↑↑↑), provavelmente, então, doses muito maiores do que os 6mg dia de Dexametasona (não encontro a dose exata em lugar nenhum, indício forte de picaretagem). Então, não venham dizer que avisaram, por mínimo bom senso! Aguardo com ansiedade e otimismo/esperança o RECOVERY Trial. Sabendo que não será milagroso...

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Bem organizar o sistema em REDE deveria ser o foco das gestões, não soluções mágicas.

Bem organizar o sistema em REDE deveria ser o foco das gestões, não as discussões circulares que não levam a lugar nenhum... O problema no extremo não é e não será Porto Alegre, a não ser que se supere em incompetência e estripulias. Há centenas de localidades Brasil afora onde qualquer coisa excedente leva ao descontrole... desde sempre, embora a situação atual gere preocupação mais do que justa e relevante.



Ainda assim, Porto Alegre tem carências e gargalos em menor escala. Como a falta de integração das instituições em redes, em tese, muito em tese, bem mais simples de serem construídas - como para ECMO, por exemplo, tecnologia útil para abordagem de insuficiências respiratórias hipoxêmicas refratárias.

Já fui chefe de uma UTI que não tinha ECMO. Nem acho que deveria ter. Mas hospitais sem esse ou qualquer outro serviço/intervenção eventualmente necessários deveriam se organizar em rede, antecipando demandas e potencialmente salvando vidas mais facilmente. Não sabem fazer. Não querem fazer. Não há sistema que os force a, pelo menos, conversar. Há competição absolutamente disfuncional entre organizações hospitalares (com exceções, é claro, geralmente trazidas por gestores que não duram muito).

Transplantes ilustram melhor o cenário, na medida em que, como possuímos vários órgãos, facilitariam acordos do tipo "perco acolá, mas ganho aqui". Uma distribuição a partir de critérios sérios e meritocráticos facilitaria formação de equipes de alta performance e melhores resultados para os pacientes. Expertise se constrói, para alguns procedimentos ultra-especializados com grandes desníveis de conhecimento até mesmo dentro de uma única instituição. Na que trabalho, de ECMO sei o básico do básico (conhecimento insuficiente, então). Mas há um grupo que faz apenas a gestão dela, e muito bem.

Na prática, faz transplante e ECMO quem quer e consegue, muitos não conseguem por não viabilizar volume (leia-se resultados financeiros) e mínima expertise. Seriam facilitados por organização no estilo da proposta acima, houvesse pensamento sistêmico e mecanismos compensatórios.



Ah, e, quem não faz, esconde até não dar mais...

Confortável em cenário em que ninguém está, de fato, procurando...

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Saturei novamente de COVID, vou discorrer sobre Meteorologia.

Até porque virou moda palpitar "cheio de convicção" sobre assuntos que não são se fazem presentes nem nos livros e artigos da tua área, nem na tua prática profissional. O ideal ainda é que essas coisas andassem juntos, mas não dá para exigir muito em tempo de epidemia, né?

Então resolvi fazer uma leitura dinâmica sobre meteorologia hoje e já escrever a respeito. A ideia surgiu após um colega, imediatamente antes de se queixar de político que havia errado uma previsão ruim para a COVID-19 na região deles, reclamar que a previsão meteorológica para o final de semana anterior havia sido de sol. E que, com base nela, trocou plantões para ir à praia, alugou um Jet Ski, e... choveu. 😏

Como funciona a previsão do tempo, hein?

Segundo fonte que saltou primeiro na tela do computador:
Os meteorologistas precisam não só ficar atentos às variações climáticas, como também aos seus impactos na sociedade. Muitas atividades, incluindo econômicas, são influenciadas pelo tempo e pelo clima, e fazer essa ponte entre a previsão e a aplicação é fundamental
Comecei a achar o assunto altamente interessante. Em meio à pandemia, sem conseguir encontrar quase ninguém capaz de discutir saúde e economia considerando existir grande importância nas duas coisas e complexa interdependência cheia de não linearidades entre elas, brilhei os olhos com meu novo assunto. Imagines agora falarem na importância de ponte entre previsão e aplicação, em paralelo à epidemia de predições na COVID-19 que, mesmo quando acertadas, não deveriam levar a nenhum lugar diferente daquele em que estavas? Se com a pandemia da COVID-19 não consigo discutir Valor, saí do parágrafo acima certo de ter achado uma bom assunto para distração entre os plantões na UTI...
Fazer uma estimativa de como estará o tempo nos próximos dias e nas próximas semanas nem sempre é uma tarefa fácil. Alguns fatores - fenômenos naturais como El Niño e La Niña, correntes marítimas - podem interferir muito nas condições meteorológicas de uma região e mudar o cenário rapidamente. Institutos de pesquisa no mundo todo desenvolvem softwares conhecidos como modelos meteorológicos. Com eles, é possível tentar prever o que vai acontecer, em uma região específica. Esse estudo envolve o conhecimento e as informações de inúmeras variáveis locais, como a temperatura, a análise da formação de nuvens, a pressão atmosférica, a umidade relativa do ar, a direção e a velocidade do vento, entre outros dados. Dessa forma, por meio do conhecimento e dos dados coletados, adquiridos através de avançadas tecnologias - que incluem estações de superfície, radares, satélites, antenas que rastreiam mudanças no campo eletromagnético da troposfera e, assim, as ocorrências de raios, balões meteorológicos e radiossondas, boias oceânicas -, os modelos meteorológicos são alimentados e, a partir de potentes computadores, criam-se previsões baseadas em probabilidades
Aí encontrei uma pérola:
O PAPEL DOS METEOROLOGISTAS: Depois de captados, os dados são reunidos em uma "carta de tempo". Esses mapas sozinhos dizem pouco - ou quase nada. Quem vai atribuir os significados a esses dados, por meio da interpretação, são os profissionais meteorologistas, que têm a qualificação necessária para entender o que cada mapa quer dizer e traduzir para o público.
No campo da meteorologia, parecem aceitar que não são capazes de opinar sem evidências, sem o referencial/norte conceitual trazido pelas evidências deles. Que exemplo de humildade! Sob outra perspectiva, escancaram no trecho acima o nobre papel da "experiência clínica", uma ferramenta para ser usada na seqüência das evidências então. Não para adivinhar a priori tudo que é papel das "avançadas tecnologias". Na COVID-19, vejo colegas inteligentes dizendo que acreditam na Cloroquina porque funcionou em meia dúzia de casos que trataram... PQP! Vamos de volta à meteorologia...

Os modelos numéricos que geram os gráficos da previsão do tempo têm uma série de limitações. Apesar de tentarem simular os fenômenos que acontecem na atmosfera da melhor forma possível, momento a momento, esses modelos não são perfeitos. Assim, cabe ao meteorologista a tarefa de decidir qual a melhor interpretação daqueles dados, um processo de interpretação e tomada de decisões que funciona melhor quando feito em grupo. Assim, vários meteorologistas experientes podem confrontar suas ideias e chegar a um consenso do que os dados realmente querem dizer. Essa decisão leva em conta fatores como a geografia, a vegetação e o clima de cada região. É por se tratar de um sistema tão complexo que a previsão do tempo não acerta cem por cento das vezes. Em alguns casos, pode acontecer de uma chuva inesperada cair no meio do dia, por exemplo, contrariando o que disse a meteorologia. Faz parte de uma ciência que lida com incertezas.
Como é que é? Conversas entre pessoas com visões diferentes????????? 😳 Está ficando interessante demais. Na atualidade, no circo da COVID-19, só "debatemos" em tribos. Vamos de volta à meteorologia... ⛅
MAS QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS ERROS NA PREVISÃO DO TEMPO?
Mesmo com o avanço da tecnologia, essas simulações e interpolações não são perfeitas (como nada na vida é). Escrever o movimento da atmosfera através de fórmulas é uma tarefa muito difícil e nesta etapa, já aparecem os primeiros erros na previsão do tempo. Ora, se a previsão de uma cidade é feita através de uma média de outras cidades, essa previsão fica mais propícia à erros. Ainda mais se o comportamento do tempo da cidade for diferente das cidades vizinhas, sendo mais quente ou mais fria. Depois de toda as análises e filtros, é traçado um mapa para os próximos dias para ver quais regiões terão sol, chuva leve ou chuva forte. E é nessa hora que outros erros acabam surgindo. Como a previsão é realizada para todo o país, é difícil analisar algo muito específico, com isso, a previsão é feita para uma determinada área que abrange várias cidades. Logo, se falam que vai chover forte nesta área e alguma cidade deste grupo não recebe chuva, a previsão para essa cidade foi errada. Também tem o erro da própria natureza. Como dizia um professor de meteorologia “a natureza não lê o mesmo livrinho que a gente”. O conteúdo encontrado nos livros e nas fórmulas matemáticas seria um retrato (quase) perfeito do comportamento da atmosfera, porém a realidade é diferente disso. Muitas vezes as simulações mostram que uma frente fria ou uma baixa pressão vai seguir um determinado caminho com uma velocidade, mas por algum motivo, há um atraso ou um avanço. E cabe ao meteorologista ajustar ou amenizar esse desvio, com base na sua experiência.
O ERRO MAIS COMUM DA MÍDIA
... é o tempo disponível para você falar da previsão para todo o Brasil. Na televisão, cada segundo é importante, e muitas vezes a previsão do tempo tem cerca de um minuto. Com isso, um novo filtro é feito: qual é o assunto mais importante que deve ser falado? Com isso, você acaba generalizando a previsão mais ainda. E quanto mais você falar de forma ampla, maior será o erro. E para minimizar esse erro, só com mais tempo na televisão, algo que é difícil hoje em dia. Uma dica boa para isso é verificar a previsão completa no site da emissora.


O QUE FAZER COM ERROS NA COVID 19 ENTÃO?

Entendi que essa é a pergunta de bilhão de dólares também na meteorologia, onde, por décadas, os meteorologistas se juntam com programadores para tentar minimizar o máximo possível os erros na previsão do tempo. Uma das coisas a se fazer, é usar cada vez mais as evidências ou tecnologias a favor. A outra é ter bons profissionais.

Mas meu maior conselho seria entendermos mais naturalmente os erros, apontarmos menos os dedos para quem previu e não confirmou, analisarmos sempre o Valor da previsão (capacidade de ser importante pelo que gerará, não através de si própria apenas). Por fim, refletir mais antes de falar sobre temas que envolvem predições. E nesse ponto precisamos ter mais compreensão com os políticos. O ostracismo para eles é pior do que não acertar no que dizem. Precisam aparecer! Errado é médico se comportar como político! 

terça-feira, 7 de abril de 2020

"Hidroxicloroquina porque não há outra alternativa!" Bobagem!

Esse texto é para quem não é profissional da saúde e é incapaz de perceber o elevado número de ações importantes que podemos oferecer para os pacientes que eventualmente evoluem mal no curso de infecção por coronavírus.

Temos muita coisa para ativamente fazer, principalmente nos casos graves.


Recentemente, meu amigo Luis Correia escreveu o texto Hidroxicloroquina: o dia em que a ciência parou e alguém comentou:

"Existem atualmente ZERO alternativas de tratamento, qualquer chance de possibilidade deve ser testada"

A pessoa certamente quis dizer "tentada", ao invés de "testada". Testar foi justamente o caminho sugerido por Luis - pela ciência, em última e verdadeira instância.

Na mesma linha do "no desespero vale tudo", outros vários comentaram seu texto. Mas será que as UTI´s realmente oferecem tão pouco e precisamos de soluções não bem testadas?

A própria postagem de Luis mais acima tenta responder sobre a utilização de soluções incertas fora de rigorosos protocolos de pesquisa ou situações de plausibilidade extrema. Focarei em tentar responder outra questão: estão fazendo pouco das UTI's e suas equipes?


Na fotografia ao lado, registro de curso de ventilação mecânica que eu organizava em meados dos anos 2000. Havia a estação Bird Mark 7 - entenda melhor este velho companheiro. Intenção era ilustrar um pouco da história da ventilação mecânica de forma prática - nas outras estações utilizávamos modernos, para a época, ventiladores microprocessados. Mas é verdade também que o Bird Mark 7 ainda era utilizado no Rio Grande do Sul, principalmente no interior.


Para começar, exemplos de duas abordagens potencialmente impactantes na epidemia atual, ambas ancoradas no ventilador mecânico, pedra angular do TRATAMENTO de síndromes respiratórias como as causadas pela COVID-19:

1) Bem ventilar mecanicamente o paciente (o que tecnicamente chamamos de buscar ventilação protetora).

Essa abordagem específica é baseada em alguns ensaios clínicos randomizados e meta-análises que avaliaram mortalidade.

Exige educação e treinamento da equipe. Engloba ainda uma série de condutas paralelas, como sedação do paciente e bloqueio neuromuscular (quando e como fazer), não menos desafiadoras. O desafio de manter a equipe permanentemente atualizada e preparada para essas questões não pode ser subestimado.

2) Ventilalar mecanicamente com o paciente de bruços (o que tecnicamente chamados de pronação ou manobra prona).

É outra abordagem que parece reduzir mortalidade. No entanto, requer expertise especial de uma equipe em sintonia. E esse é um ponto importante nessa discussão onde não existe vácuo: onde aparece Hidroxicloroquina, ocupa-se tempo e energia que poderiam estar sendo direcionados para outro lugar...

Clique na figura e leia publicação que escancara a complexidade do processo.

Assumindo agora que um bom médico não prescreveria Hidroxicloroquina simplesmente porque o Trump ou o Bolsonaro acreditam que funciona, e que gastaria cerca de 1 hora para uma busca sobre a droga e mínima avaliação, vejamos o que é possível fazer nesse tempo numa UTI, dessem tranquilidade para instâncias técnicas superiores como o Mandetta* simplesmente dizerem em voz alta e forte: "À luz da evidência, não existe Hidroxicloroquina para COVID-19"

* Mandetta parece estar escolhendo as brigas mais necessárias, e talvez esteja mais uma vez certo.

O que é possível fazer em 1 hora numa UTI?

a) É possível uma reunião proveitosa entre os médicos e fisioterapeutas intensivistas líderes, vislumbrando redução de variabilidade não aceitável em condutas ligadas à ventilação mecânica e manobra prona, reforçando pilares do que chamamos de melhores práticas, com vistas a posterior treinamento da equipe toda;

b) É possível fazer um bom treinamento da equipe intensivista sobre ventilação protetora, contextualizando com especificidades já conhecidas da COVID-19; 


c) É possível fazer um bom treinamento da equipe intensivista sobre manobra prona;

d) É possível revisar com a equipe responsável se estão coletando certinho os testes diagnósticos para a COVID; 

E por aí vai.... 

Sem contar o desafio tantas vezes necessário da incorporação tecnológica nas UTI's:


Ou da adequação das próprias equipes, como em número de enfermeiras e posicionamento.

Já fui chefe de uma UTI onde haviam poucos intensivistas de formação. O rotatividade de pessoal da Enfermagem era comprometedora. Prevalecia o medo da manobra prona por falta de treinamento e hábito. Faltava ventilador de transporte para situações onde seria necessário buscar um melhor entendimento do quadro a partir de tomografia a ser realizada fora da unidade. Nenhuma pressão com um décimo da potência da Cloroquina era percebida.

Quem não atua em UTI, Emergência ou situações de desastres não reconhece o quanto carecemos pouco de pílulas mágicas (por mais que ajudem, medicamentos sequer costumam ser), e muito de organização, alinhamento de processos, treinamentos, trabalho em equipe e revisões constantes de tudo isto.

Sintetiza primorosamente a filósofa Olgária Matos (2008):
A “escalada da insignificância” resulta numa lógica de desengajamento em relação ao mundo compartilhado. 
Nos anos 50, a epidemia de poliomielite deu o grande ponta pé em direção ao que deveriam ser hoje UTI's modernas e transformadoras. Quem sabe direcionar energia e recursos agora para o que realmente importa? Se corrermos, será possível beneficiar os doentes por coronavírus, e ainda deixar melhorias de herança, que certamente não serão como os estádios da Copa.

Quem for compartilhar, quem sabe o faça acrescentando qualquer coisa mais útil do que medicamentos não comprovados e que uma UTI poderia estar oferecendo? Ou quem sabe uma outra opção do que fazer em 1 hora numa UTI em substituição a debater sobre hipóteses nulas intocadas?