quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Os Hospitalistas, o Novo Velho Mercado da Saúde, a Síndrome do Patinho Feio e o Cisne Negro

Aliança estratégica entre grupo de médicos e hospital é um dos pilares centrais da Medicina Hospitalista (MH). Entenda-se como aliança estratégica uma relação pautada em interesses mútuos, respeito e colaboração, através de práticas sustentáveis.

Há muitos entusiastas da MH desanimados após experiências frustras. Certa vez, escutei de um deles que “a MH no Brasil não tem futuro, somos os mais feios da turma [dos médicos, entre diversas especialidades]. Vou fazer otorrinolaringologia”. E fez!

Mas será que existe mesmo razão para uma Síndrome Coletiva do Patinho Feio?


Creio que uma boa parte dos leitores deve ser familiar com ambas as metáforas do título principal, mas vale uma rápida passagem por elas. A última nos remete à capacidade ou incapacidade humana de prever tudo, através do extremo: Cisnes Negros são imprevisíveis mesmo; a outra, à tendência comum de nos acharmos o mais feio da turma, injustificadamente.

Não há razões para complexo de inferioridade! O que existem são obstáculos e armadilhas, mais ou menos comuns entre a maioria das especialidades médicas, no que diz respeito à construção de aliança estratégicas saudáveis entre grupos de médicos e instituições da saúde. Vejamos alguns exemplos:

A ex-hospitalista que virou otorrino foi trabalhar em extensão de poderoso hospital da cidade desenvolvida inovadoramente dentro do mais tradicional Shopping Center da região. Empolgada com a ideia, vendeu seu consultório original, demitiu-se de um emprego e apostou todas as fichas no projeto visionário, com alto investimento financeiro. Em dois anos, o hospital agradeceu aos participantes médicos e comunicou que manteria apenas oferta de exames lá.

Não bastasse a volatilidade dos planejamentos estratégicos dos antigos hospitais, hoje grandes conglomerados da saúde, usualmente pautados em visões de curto, no máximo médio, prazo, ela poderia muito bem ter tido seu grupo trocado por outro da mesma especialidade, estivessem fazendo um belo trabalho ou não. Hospitais não raramente se comportam como clubes de futebol. Quem é fã do esporte bretão certamente já ouviu falar das “ovelhinhas” do Tite, atual técnico da seleção brasileira. O fato é que todos os técnicos têm os seus “bruxos”. É natural até, e em algumas situações útil. Mas muito comumente os critérios de seleção, sejam nos clubes ou nos hospitais, não valorizam o desempenho que deveriam...

Outro amigo dividiu recentemente comigo desafios na carreira. Faz especialidade focal como verdadeiro subespecialista (em oposição, por exemplo, ao cardiologista que atende predominantemente hipertensão arterial leve, competindo disfuncionalmente com clínicos e médicos de família). E está bem-sucedido: cheio de pacientes, ganhando o que considera suficiente e com intenso reconhecimento dos pares. Preserva área de atuação que poucos na sua especialidade fazem, o que confere diferencial competitivo. Faz sua prática hospitalar privada em alguns hospitais da região, mas gostaria MUITO, e há anos, de focar em apenas 01, estruturando equipe de forma a, supostamente, todos ganharem: seu grupo poderia se organizar melhor em turnos e finais de semana, aprimorando qualidade de vida. Em troca, algum desses hospitais – nenhum deles possui sobreaviso oficial da área de atuação ou mesmo da especialidade – poderia ganhar cobertura 24/7. Fantástico, não?

Esse desejo de focar em apenas um hospital já perdura por anos. Conta que há quase uma década atrás recebeu convite para estruturação de escala de sobreaviso em um deles, onde seu grupo ganharia algumas bugigangas e penduricalhos diretos, como direito à estacionamento, além de vantagens indiretas. Não considerou interessante, já era e segue bem-sucedido. Já o hospital permanece até hoje sem sobreaviso oficial, contando com a sorte - nada que ponha em risco o selo de qualidade também... Recentemente, ele recebeu o mesmo tipo de proposta “caracu” de outro hospital, mas com traços de crueldade: ameaças veladas de perder o que já tem.

Como estes hospitais funcionaram ao longo de anos sem sobreaviso oficial? Ao cabo, sempre dão um jeitinho! Certamente outros grupos se aproximaram ao longo do período também, eventualmente preenchendo os buracos de quase sempre, temporariamente iludidos, até aparecer algo melhor ou serem trocados. Não como costuma ser em mercados funcionais, onde é saudável o movimento de profissionais entre empresas, ocorrendo com os buracos preferencialmente sempre tapados, e sem predomínio do 'aparecer algo melhor', que, na saúde, é sinônimo de alianças naturalmente frágeis.

Outro exemplo para que não se pense existir um "defeito de fábrica" específico da MH brasileira: avaliem a realidade nacional das Medicina Intensiva e de Emergência. Trabalho em um hospital com 100% de intensivistas titulados e com rotina organizada (até o início da epidemia, ao menos). Entretanto, a realidade é heterogênea, mesmo em Porto Alegre. No Brasil, há predomínio quase absoluto do contrário em várias regiões. Muitas vezes, o plantão na UTI é bico para que especialistas focais (que não deveriam trabalhar lá), tenham uma renda fixa que os mantenha "por perto", auxiliando para que exerçam no respectivo hospital sua atividade "principal", (in)formal, cheia de elementos muito parecidos a "trabalho voluntário", havendo tentativa de compensação a partir da oferta dos plantões: um sistema que se organiza, desde que o mundo é mundo, a partir da necessidade dos hospitais e, muito questionavelmente, dos médicos, bastante distante das necessidades dos pacientes, em especial dos mais vulneráveis e complexos. Pobre desses pacientes numa UTI assim, por exemplo.

Nunca me esqueço também de experiência pessoal onde a ideia era, muito em tese, estruturar uma UTI de intensivistas titulados e diferenciados. Momentaneamente iludido e empolgado, estive, como coordenador, com algumas pessoas na porta para entrar, gente cuidadosamente selecionada. Uma delas era quem eu queria como responsável maior pela minha pretensa rotina, chama-se Lívia - profissional completa, do ponto de vista técnico e humanístico. Tudo dependia da confirmação de uma nova política salarial. Escutei da minha liderança: "bota pra dentro e depois se vê isso. Diz que virá o aumento e o amanhã é outro dia". É como tradicionalmente ocorre! Criam-se expectativas, não há preocupação em cumprí-las. Na pior das hipóteses, o problema é tamponado por um tempo... 

Quem nutre a ideia de um "milagre hospitalista" nesse cenário, está equivocado, a não ser que o objetivo seja engano coletivo, como vendendo aulas de fisiologia hospitalista para locais sem sequer a anatomia do modelo, o que, partindo de gente qualificada, sempre cobre lacunas e, parcialmente, se justifica então. Eu nunca nutri esperança de milagre em larga escala!

Uma coisa que já aprendi com o Brasil é que ele nunca é maravilhoso, nem tão feio, como se pinta. Sequer é muito diferente da maioria dos outros países também. Assim como para a boa Medicina Intensiva ou de Emergência, é preciso a MH investir nos lugares e nas pessoas certas, torcendo sempre por uma ajuda do acaso. Se é que o certo para você não é justamente o modelo tradicional, com uma informalidade e falta de alinhamento com o hospital que por vezes facilita a vida do médico. Cisnes Negros são, por definição de Nassim Taleb, imprevisíveis e raros, compreensíveis só depois de ocorrido. MH no Brasil não é Cisne Negro, nem mesmo ilhas de exceção, a essas alturas. Mas há barreiras e dificuldades, e não são poucas. A verdadeira Medicina Hospitalista está apenas um pouco menos acessível por aí que as boas UTI’s, talvez até mesmo mais prevalentes que as verdadeiras Salas de Emergências, e não muito mais vulneráveis que grande parte das especialidades médicas, excetuando-se as que constantemente figuram no topo da lucratividade. 

Não sou capaz de garantir para ninguém quando o prognóstico é bom, mas já aprendi muito sobre quando o prognóstico é ruim. A velha ideia de que, por exemplo, o Time de Resposta Rápida será transição para MH, quando se percebe nitidamente a atmosfera tradicional, é uma das tradicionais falácias. Houve um hospital de São Paulo que, nos primórdios do movimento, há quase 10 anos, tentou forçar um protagonismo. Até hoje não tem hospitalistas. Meu hoje amigo, Antônio dizia: "transição, transição". Para mim era óbvio: não seria. Nunca aconteceu. Diferente do Hospital da Cruz Vermelha do Paraná, onde, desde que coloquei os pés lá, percebi na Direção que, mesmo que não desse certo, eles tentariam. Eles sequer precisavam do meu empurrão...

Todos as histórias são verídicas. Algumas referências foram trocadas para preservar os envolvidos.

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