quarta-feira, 17 de junho de 2020

Por favor, não diga que avisou do Corticóide!

É claro que tanto eu quanto colegas da Choosing Wisely Brasil temos nossos palpites sobre drogas para o COVID-19. Muitos até não, pelo histórico das doenças virais semelhantes.

Entretanto, o bom senso indica não contar aos quatro ventos antes de evidências positivas de suficiente e boa qualidade surgirem ou, pelo menos, um corpo bem consistente de evidências preliminares. Por quê?

Em parte, já tentei explicar aqui. Para quem lê em inglês, sugiro fortemente esse livro também, com linguagem acessível a quem não é profissional da saúde:


Ainda não quero entrar no mérito da Dexametasona para COVID-19 em si, pois aguardo publicação para ler o estudo na íntegra. Devo confessar que "ansiosamente" - já sinto ser possível "torcer por uma medicação"....

Mas, por favor, não diga que avisou do Corticóide!


Não havia motivos para indicar uso rotineiro antes, simples assim.

Era o que diziam UCSF e Brigham and Women's Hospital, se é que isso importa muito.

















O fato é que não havia evidências suficientes, diretas ou indiretas. E existe uma discussão sobre riscos bastante relevante:


SARS: systematic review of treatment effects. PLoS Med. 2006;3(9):e343. CONCLUSIONS Despite an extensive literature reporting on SARS treatments, it was not possible to determine whether treatments benefited patients during the SARS outbreak. Some may have been harmful. Clinical trials should be designed to validate a standard protocol for dosage and timing, and to accrue data in real time during future outbreaks to monitor specific adverse effects and help inform treatment.
Corticosteroids as adjunctive therapy in the treatment of influenza. Cochrane Database Syst Rev. 2016;3:CD010406. MAIN RESULTS We identified 19 eligible studies (3459 individuals), all observational; 13 studies (1917 individuals) were suitable for inclusion in the meta-analysis of mortality. Data specific to mortality were of very low quality. Reported doses of corticosteroids used were high and indications for their use were not well reported. On meta-analysis, corticosteroid therapy was associated with increased mortality (odds ratio (OR) 3.06, 95% confidence interval (CI) 1.58 to 5.92). Pooled subgroup analysis of adjusted estimates of mortality from four studies found a similar association (OR 2.82, 95% CI 1.61 to 4.92). Three studies reported greater odds of hospital-acquired infection related to corticosteroid therapy; all were unadjusted estimates and we graded the data as very low quality.
Corticosteroid Therapy for Critically Ill Patients with Middle East Respiratory Syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 2018;197(6):757. CONCLUSIONS Corticosteroid therapy in patients with MERS was not associated with a difference in mortality after adjustment for time-varying confounders but was associated with delayed MERS coronavirus RNA clearance.
Mesmo nas condições clínicas mais próximas (para COVID-19 especificamente quase tudo é, obviamente, muito novo e controverso), onde o Princípio de Complacência deve ser aceito e empregado, a dúvida era válida e não encorajava o uso rotineiro de qualquer corticoide. Em meta-análises de SARA, até o início da epidemia, eventual positividade discutível veio sempre puxada por estudo antigo de 1998, cujos resultados nunca mais foram igualmente replicados. Subgrupos mostraram aumento de mortalidade. O fato é que não utilizamos, nos bons centros do Brasil e do mundo, corticoide de rotina em SARA, não sejam hipócritas! Presenciei a utilização do Protocolo de Meduri por um curto período durante minha residência, nem lembro bem a razão. Foi em 2003. Nunca mais depois.  

De qualquer forma, o protocolo de Meduri se utilizava de cerca de 4x mais corticoide ao dia (calculada equivalência) do que o estudo que aguardamos da Dexametasona em COVID-19, por período cerca de 3x maior. O Uptodate já não recomenda ele e sim o equivalente à aproximadamente o dobro da dose do RECOVERY Trial pelo dobro do tempo (menos que Meduri, então) - para casos selecionados, reconhecendo o benefício incerto fora situações bastante específicas, e desestimulando nas situações de SARA não grave.

Ou seja, estamos falando de evidências comparáveis, mas, bem ou mal, agora uma absolutamente inédita e específica, com dose e tempo de tratamento muito pouco comparáveis. No tal Protocolo de Madri, falam em "pulsoterapia" (risco ↑↑↑↑↑), provavelmente, então, doses muito maiores do que os 6mg dia de Dexametasona (não encontro a dose exata em lugar nenhum, indício forte de picaretagem). Então, não venham dizer que avisaram, por mínimo bom senso! Aguardo com ansiedade e otimismo/esperança o RECOVERY Trial. Sabendo que não será milagroso...

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