Questão é que é muito fácil fazer MBE e ser racional na teoria, em especial quando apontamos problemas em outras especialidades ou em cenários onde a discussão nos afeta diretamente pouco (em situações sem a “pele muito em jogo”). Em contrapartida, há aquelas em que a coisa não resta tão fácil assim não…
A reflexão agora surgiu da postagem abaixo, no Twitter 👇
E bem aqui eu perderia meu réu primário pic.twitter.com/Ma4cMaJsko
— magui 6️⃣🐝 (@maguilyc) May 9, 2022
Há alguns meses um estudante colaborador da CWB nos sinalizou que:
“Por vezes me pergunto se vale à pena trazer outros alunos para o projeto. Porque, depois que se aprende e se entende MBE, tamanho de efeito, incertezas, surgem muitas angústias e decepções com a medicina e os médicos em si. Não sei se quero levar essa angústia para outros colegas”.
Há nisto uma parcela de responsabilidade nossa. Porque não estamos sendo capazes de informar que, apesar de tudo, há relevantes avanços nas últimas décadas, mesmo que instáveis ou lentos - e que são parte disso. No cômputo geral, somos melhores hoje do que já fomos, e isto deveria estimular os colaboradores, em especial os jovens, não o contrário. Mas há razões outras concretas para sentimentos dessa natureza. E, se não soubermos valorizá-las e abordá-las, podem mesmo causar frustrações e burnout. Outro exemplo:
Esta semana, conversei com colega muito próximo a cerca de profundo desconforto que sentiu em uma atividade de congresso e adiante dela. Era um painel do tipo “como eu faço”. A cada rodada de assunto, um grupo de aproximadamente meia dúzia de médicos especialistas apontava o que era feito em suas instituições e os porquês. Quase tudo baseado em “experiência”. Quase nada norteado por construção científica do pensamento/raciocínio/conclusões. Existem tópicos realmente controversos, mas, naquele cenário, reinou uma heterogeneidade de práticas incompatível com as evidências já disponíveis.
Falamos sobre o mal-estar de valorizar MBE nestas situações e os caminhos possíveis:
a) Podemos optar por colocar as relações sociais ali envolvidas como alvo de nosso interesse primário. E não tensionar nada. Restaria apontar o que é feito na sua prática como mais uma descrição de experiência, como se não existissem nortes científicos bem alicerçados, como se existisse de fato alguma controversa a ser explorada. E não atritar nada! Foi o que o colega fez;
b) Podemos tentar apontar, em tom ainda muito preocupado com as relações sociais ali envolvidas, equívocos e armadilhas do modelo mental vigente. Mas, por onde começar????? Pelas limitações da “experiência clínica”? Pelas limitações dos relatos anedóticos? O fato é que não é possível nem querer começar. Seria preciso quantas horas de explicação para aqueles que partem de outras formas de pensamento que não a probabilística ou científica? Restam mesmo ‘a’ e ‘c’...
c) Alguns comunicadores da ciência defendem que existem momentos em que não há outra forma de fazer a não ser a incisiva, aguda, direta ao ponto. A mensagem lá no painel deveria ser dada aos consumidores finais da informação e não deveríamos nos importar com os sentimentos dos que pensam diferente no debate. Significaria colocar os expectadores como alvo do interesse primário e, na prática, ofender os demais debatedores. Sim, porque, queiramos ou não, sendo a mensagem curta e grossa, é assim que reagirão: acuados em ambiente onde era para brilharem. Naturalmente, ofendidos...
Na teoria, parece outra daquelas decisões fáceis, de um único caminho moral. Considerando-se que, sem tempo e sem a aceitação automática pelos envolvidos de que passariam a ser alunos também, e não mais debatedores no mesmo nível, é inevitável a geração de um cenário polarizado e confuso. Um cenário que naturalmente determinará mágoas, ressentimentos e reações. Precisamos compreender a razão pela qual acaba evitado pela maioria de nós. Ainda que sigamos engasgados, com sensação de inoperância, impotência - um caldo de cultura para burnout!
E não pensem que 'b' é apenas uma questão de tempo e bom papo. É complicado! Muito complexo! Hoje eu presenciei um atendimento onde havia dor e uma das propostas foi "acupuntura médica". Quem a defendeu criticou veementemente a acupuntura tradicional chinesa. Nada em tom que me pareceu inadequado. No entanto, tenho um grande amigo que acredita e faz a acupuntura tradicional chinesa e convicção de que se sentiria agredido ou magoado com as considerações. Um dos argumentos foi de que a acupuntura tradicional chinesa não respeita sequer a anatomia e a fisiologias médicas, complementando: "muitos não respondem então, e vêm a melhorar conosco, através da técnica adequada de neuromodulação". Sem entrar no mérito de quem tem a razão, se é que existe, uma das questões mais instigantes é que ambos os colegas acupunturistas são pessoas sensacionais e bem-intencionadas. E ambos enxergam benefício evidente de seus agulhamentos, caso contrário não aplicariam.
Uma coisa no cenário acima é você ser um Edzard Ernst, que tem na crítica às terapias alternativas sua principal atividade e campo de produção acadêmica - "amigos, amigos, negócios à parte". Outra coisa é você, como médico, avançar produtivamente nesses debates, em meio à relacionamentos sociais necessários e produtivos. Quem tiver uma solução outra que não gere atritos significativos, favor apontar! É muito arriscado falar a alguém que o que faz ou propõe pode ter pouco valor.
Some-se isto acima ao cenário sistêmico que tanto dificulta racionalidade, e veremos que o furo é mais embaixo...
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