segunda-feira, 27 de julho de 2020

Guardemos os "eu acredito" para nossas bem-vindas atividades de cunho religioso ou espiritual. As protegerão da rigidez necessária da Medicina.

eu acredito, tu acreditas, ele acredita, nós acreditamos, vós acreditais, eles acreditam
O ACREDITAR, em circunstâncias médicas, através de substratos para conclusões advindos exclusivamente de observações pessoais de fenômenos biológicos complexos e, portanto, naturalmente seletivas e limitadas (para muitos, sabemos, um exercício de humildade difícil de aceitar), não é exclusividade dos atuais defensores de "Kit COVID", seja lá como queiram compô-lo.

Observamos médicos enfurecidos com defensores dessas [até o momento] fantasias. Certamente convivem com fantasias da mesma natureza em suas especialidades e, muito provavelmente, em suas próprias práticas...


O mesmo tipo de exercício mental mal conduzido é feito até por colegas que se identificam com a iniciativa Choosing Wisely. Em passagem de plantão de uma UTI COVID, essa semana, profissional "less is more" disse:

- "Ficou [um paciente] com medidas de suporte, não entrei com Dexametasona porque não acredito naquele estudo".

Complementou dizendo que já viu muitas vezes o mundo dar voltas, que acreditava ser necessário replicar os resultados.

Ilustra confusão entre valorização da incerteza e certeza travestida de incerteza. Não existem verdades absolutas em Ciência. Mas os “negadores exagerados” são tão equivocados quando os "crentes impenetráveis". O problema, no campo da saúde e outros tantos, está em ACREDITAR além das nossas verdadeiras possibilidades, para questões onde existem riscos consideráveis.



Se ceticismo está no cerne do pensamento científico, justificando a necessidade de dados empíricos para comprovar um fenômeno e não nos enganarmos. E mesmo reconhecendo a condição ideal de replicação dos experimentos (como espertamente deseja o colega). Há um ponto a partir do qual, mesmo não se podendo dar "certeza absoluta e permanente" - conceitualmente isso sequer existe, gente! -, devemos aceitar o norte científico disponível e as suas "verdades momentâneas". Não precisamos impor a todos os pacientes (por diversas possíveis razões que não vêm ao caso aqui), podemos, e muitas vezes devemos, manter o ceticismo. Entretanto, discriminar razoavelmente esta complexa linha entre evidências insuficientes e aceitáveis está no âmago da Medicina contemporânea - se não para o completo abandono de práticas sem demonstração de eficácia, para conversas mais francas com nossos pacientes, sem promessas descabidas.

Precisamos entender quando evidências são e não são "confirmatórias". HÁ EVIDÊNCIAS PARA SE ACREDITAR EM QUALQUER COISA - o segredo está na discriminação do grau de incerteza. O entre aspas têm inúmeras explicações, entre elas a necessidade de idealmente revisitarmos evidências estabelecidas em momento onde o cuidado era diferente do atual. A magnitude de benefício pode não ser mais a mesma. E por aí vai...

Parte da razão pela qual alguém não ACREDITA em medicação validada em ensaio clínico de qualidade aceitável (Recovery Trial) é a mesma visão não probabilística de mundo que justifica a defesa do "Kit COVID". Ajuda a entender porque criticamos as fantasias dos outros, mas sustentamos as nossas.

Da mesma forma que não conseguimos enxergar o efeito da maiorias das medicações que não funcionam, atribuindo a elas o efeito de outras coisas (fatores de confusão - pode ser simplesmente tempo), não seríamos capazes de discriminar o efeito benéfico isolado da Dexametasona. Tentar fazê-lo é buscar frustração desnecessária, pois de fato tratamos pacientes para beneficiar apenas um de um grupo muito maior que também melhora. Assim como há os que morrem a despeito de nosso tratamento eficaz. É desse jeito! Simples na explicação, impossível de nossos olhos discriminar a derradeira explicação de cada desfecho.

sábado, 18 de julho de 2020

Como destruir um sistema de saúde e colocar a culpa no outro...

Engana-se quem acha que toda discussão técnica da Saúde tem necessariamente relação direta com Política ou Sistemas Econômicos. Mas muitas podem indiretamente representar profecias político-econômicas autorrealizáveis:

Essa semana percebi em redes sociais manifestações de dois médicos, ambos defensores das Cloroquinas/Ivermectinas, ambos bastante ambivalentes por atuarem profissionalmente justamente no cenário que tanto criticam.

Para o primeiro, o problema do mundo está na saúde suplementar e no mercado. Seu principal sustento vem de um plano de saúde popular. Acha que apenas o SUS pode funcionar bem.

Para o outro, a personificação do mal está nos sistemas "socializados" e, portanto, no SUS. Trabalha em hospital universitário público, o mesmo que o meu.


Paradoxal é a constatação que não há modelagem de assistência à saúde que suporte o financiamento irracional de fantasias em larga escalas (leia-se terapias sem mínima comprovação de eficácia), seja em SUS ou na saúde suplementar dos planos para cidadãos médios/comuns, como eu e provavelmente tu.

Fossem qualquer um desses cenários conduzidos predominantemente por médicos a imagem e semelhança de qualquer um dos dois, ambos, mais cedo ou mais tarde, sucumbiriam/rão. Então, talvez o sistema que tanto criticam seja mais um espelho deles próprios do que predestinado a não dar certo a priori.

Uma desses medicamentos sem comprovação de eficácia custou aos cofres públicos de uma cidade catarinense de 200.000 pessoas R$ 4,4 milhões, fora os custos indiretos por estrutura de distribuição. Precisa explicar melhor como apostar em incerteza muito acima do aceitável pode lesar?

Para ambos os médicos, só restaria a defesa de planos de saúde extraclasse, caríssimos, cujas mensalidades já incorporassem “qualquer coisa”, no estilo parque da Disney com Fast Pass. Infelizmente, nunca serão solução para aplicação em massa. 

Pacientes que não compreendem e criticam seus planos de saúde, também cumprem profecias autorrealizáveis.

Esses médicos e esses pacientes JUNTOS, literalmente f... qualquer sistema de saúde não elitista, seja público ou privado. Para depois encher nossa timelines de lamentações ou teorias de como fazer melhor.

domingo, 12 de julho de 2020

Criticidade verdadeira exige valorização da auto-crítica.

Desde os tempos em que eu discutia mais Conflitos de Interesse, é fácil de perceber duas posturas:

- Não aceitação completa da possibilidade das influências externas sobre a corporação médica com magnitudes minimamente valorizáveis;

- Aceitação da influência sobre terceiros, mas não sobre si mesmo (eu já chamei isso de O eu ético, o outro não).

A postura de aceitar a influência sobre si mesmo eu raramente vi. Talvez seja apenas uma manifestação da pouca capacidade de auto-crítica tão prevalente em nós humanos.

Recentemente publicamos um trabalhinho que rendeu mídia espontânea.
Jornalista publicou matéria cujo link de divulgação destaca foto de Bolsonaro. No texto, dando a entender ser conclusão de nossa pesquisa, afirmou que polarização política promove a irracionalidade médica do contexto atual. Deveria ter escrito que era a "sua" interpretação...

Não concordo que a irracionalidade seja novidade da epidemia - pode ter sido potencializada.
E até acho que a polarização política tem relação com isto mesmo.

Entretanto, nosso estudo, de caráter absolutamente exploratório, traz uma SUGESTÃO* de irracionalidade médica excedente - o que chamamos lá de "efeito pandemia". Não tem capacidade de afirmar que esse excedente é real, e muito menos de apontar fatores associados. Nosso objetivo, a priori, era promover reflexões, e nesse aspecto, o que chamei de trabalhinho ganha enorme relevância.

* Na amostragem como foi feita, médicos responderam perguntas. Qualquer questionário é apenas uma amostra de perguntas possíveis, cujas respostas não passam de uma outra amostra das atitudes e experiências dos respondedores para cada uma das questões. Em nossa avaliação, comparamos Hidroxicloroquina com Vitamina C em sepse. É possível que o menor apego dos profissionais à Vitamina C possa simplesmente refletir pouco conhecimento da questão entre não-intensivistas.


Pois quando começamos a receber críticas de que o artigo tinha viés ideológico, sugeri o uso da análise acima como parte da explicação. E que, e aí não foi sugestão (as razões estão em nosso regimento e código de condutas), fugíssemos das discussões eminentemente políticas estando a marca Choosing Wisely Brasil de alguma forma associada. A neutralidade, inclusive política, é um mito, mas, enquanto coordenador da iniciativa, não abro mão do permanente exercício de busca, mesmo que utópico. Nosso foco de discussão na CWB é saúde, secundariamente evidências científicas e escolhas possíveis.

Achei muito interessantes respostas de alguns:

"O mais importante é nosso artigo está lá";

"O jornalista pode notar que ressalvas foram feitas e não mais nos prestigiar".

Aqui é importante parar e destacar: Quando reclamamos que terceiros não atuam assertivamente calibrando interpretações daqueles que escrevem sobre seus resultados, favorecendo spins positivos e outras formas de hipervalorização de achados ou interpretações desproporcionais, é importante lembrar, para acertar o tom, que não fazem por mal - tal como nós não fizemos.

É muito possível que apenas estejamos todos em meio que não valoriza o feedback negativo. Em ambiente onde nossas ideias precisam parecer mais "ideologicamente completas" do que são para emplacar na mídia, sempre sob a perspectiva parcial de alguém então.

E, se esse diagnóstico estiver certo, mesmo que incompleto, devemos assimilar que o exercício de autocorreção pública e sem firulas não seria apenas aconselhável, e sim obrigatório - o único ponto de partida para movimentos que desejem promover nos outros mudanças em questões que são sistêmicas e incluem a todos - não há eles errados e nós imunes.

Não apontamos limitações de nossas produções científicas e intelectuais porque a cultura é a mesma de outros tantos setores. As coisas devem ser atrativas, sexies, quando não apelativas. É essencialmente isso que precisa mudar.

   

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Perigos dos líderes inflexíveis em iniciativas que promovam decisão compartilhada.

Passei a refletir sobre a questão após leitura despretenciosa do artigo abaixo:
Obviamente carisma não é uma característica negativa por si só, mas pode ser perigosa quando o líder se resume a isto. Ou quando o carisma e necessariamente alguns fatores associados passam a predominar, mesmo que por momentos ou situações.

Segundo o texto, líderes carismáticos tendem a ser indivíduos com auto-imagens muito positivas e muito orgulhosos dos temas e conclusões sobre os quais estudam ou refletem com frequência. Podem ainda ser pessoas com auto-confiança e convicções pouco abaláveis. Percebem a realidade unicamente através do prisma de suas próprias visões e as transferem, mesmo que através da sedução de admiradores - sem exatamente forçar então.

Neste cenário, o líder pode simplesmente impor crenças e modos aos seus recalcitrantes seguidores, a despeito de certos ou errados. Não há espaço para dúvidas ou dissidências. Uma perspectiva alternativa, baseada na institucionalização do feedback é raramente considerada. A influência é, via de regra, unilateral, fluindo do(s) líder(es) para os subordinados - é isso que passam a ser, subalternos mesmo. Problemas se tornam inevitáveis quando estes líderes desenvolvem convicções sobre só existir um único jeito de fazer as coisas - o seu próprio.

Qual a relação com Choosing Wisely e decisão compartilhada?

Uma coisa é criticar Cloroquina ou qualquer outra intervenção médica momentaneamente fantasiosa. Outra, bem diferente, é entrar em guerra com pacientes diretos ou potenciais ao defenderem ou optarem por fantasias - Cloroquina, Ivermectina ou qualquer outra. Poderia ser stents em pacientes assintomáticos, um debate de mais de uma década entre realidade e ilusão. E, como líderes carismáticos, acabar disseminando mais ódio do que informação necessária. É potencialmente muito injusto (muitos de nós costumamos ter nossos amuletos também), mas não apenas: é incompatível com decisão compartilhada e autonomia das pessoas;

Uma coisa é criticar uma determinada abordagem, como massoterapia, acupuntura ou Swan Ganz argumentando que, cientificamente, não se deve afirmar que cura ou melhora o prognóstico médico da doença. Outra coisa, bem diferente, é satanizar essas intervenções, que sequer poderiam ser chamadas de pseudociência quando quem as oferece/utiliza não lhes imputa propriedades desproporcionais ou descabidas. E, como líderes carismáticos, acabar disseminando mais estilo próprio do que informação útil e que auxilie na escolhas de terceiros;

Uma coisa é querer transformar, na marra, qualquer coisa em uma intervenção médica quando não é, como certas práticas espirituais ou rituais sociais variados. Outra, bem diferente, é querer proibir para os que gostam porque você não gosta. E, como líderes carismáticos e influentes, acabar disseminando mais preconceito do que informação transformadora.
Gostos e preferências, hobbies e manias não necessariamente devem ser discutidos com Pubmed eternamente aberto, intervalos de confiança, significâncias estatísticas e NNT's/NNH's....
E é esta outra coisa que os perfis 'donos da razão carismáticos influenciadores', quando fazem, "fazem bem". Porque, quando pregam, alimentam tribo, ao mesmo tempo que bloqueiam diálogos externos. Transformam-se, então, em multiplicadores de si próprios e, muito naturalmente, em barreiras para decisões verdadeiramente compartilhadas e em risco escalonável para autonomias alheias. O risco final é o da transformação de movimentos que, mesmo quando confundem com comunicação interna geralmente harmoniosa, e possam dizer que defendem a Ciência, culminam em cultos pouco maleáveis, justamente uma característica da pseudociência:






















Pensar e fantasiar não pode jamais ser considerado ilegal*, mesmo quando errados! A pior proibição é a do pensamento, passo essencial do exercício de autonomia, bem ou mal conduzido, bem ou mal exercido! Dificulta o trabalho de quem defende o método científico, mas faz parte...

* Profissionais da área também podem, eles próprios, optar por práticas ilusórias, e seria problema deles apenas. No entanto, quando o fazem profissionalmente (a até mesmo algumas postagens públicas em redes sociais podem caracterizar tentativa de convencimento por argumento de autoridade e, portanto, profissional), deveriam ser alvo de investigação, senão legal, ética - pelos respectivos conselhos profissionais. Ainda assim, atmosfera totalmente inculpadora deve ser evitada, para manutenção de Cultura Justa: não faz sentido queimar bruxos cloroquiners, como na Inquisição, no mesmo contexto cultural onde o próprio CFM ainda avaliza homeopatia, cardiologistas colocam milhares de stents desnecessários e promotores de bem-estar (wellness) hipertrofiam valor universal e inegociável de dietas específicas (como na seita low-carb) ou do estilo/intensidade de práticas esportivas com base em gostos pessoais, e por aí vai... Calma!


"Já ouvi um cético falar de modo superior e desdenhoso? Certamente. Às vezes até escutei, para minha posterior consternação, esse tom desagradável na minha própria voz. Há imperfeições humanas em ambos os lados dessa questão. Mesmo quando é aplicado com sensibilidade, o ceticismo científico pode parecer arrogante, dogmático, cruel e sem consideração para com os sentimentos e as crenças profundamente arraigadas dos outros. E deve-se dizer que alguns cientistas e céticos diligentes aplicam essa ferramenta como se fosse um instrumento grosseiro, com pouca finura. Às vezes é como se a conclusão cética viesse em primeiro lugar, como se as afirmações fossem rejeitadas antes do exame da evidência, e não depois. Todos nós acalentamos as nossas crenças. Em certo grau, elas definem o nosso eu. Quando aparece alguém que desafia o nosso sistema de crenças, declarando que sua base não é suficientemente boa - ou que, como Sócrates, faz perguntas embaraçosas em que não tínhamos pensado, ou demonstra que varremos para baixo do tapete pressupostos subjacentes de importância capital -, tal fato se torna muito mais do que uma busca do conhecimento. Nós o sentimos como um ataque pessoal." Carl Sagan, O Mundo Assombrado Pelos Demônios, cap. 17 - O casamento do ceticismo e da admiração.




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