terça-feira, 9 de novembro de 2021

Quando Cuidados Paliativos interagem com intervenções de baixo valor sem o necessário cuidado, podem se prejudicar.

A relação das especialidades médicas com as pseudociências típicas e as intervenções de baixo valor de um modo geral é complexa. Algumas especialidades são mais “tradicionais” e prática de baixo valor, quando por elas encampadas, ganha roupagem de credibilidade. Cuidados paliativos - CPs, ou qualquer iniciativa mais "integral" (poderia ser a Slow Medicine ou a CWB), por sua vez, são mais suscetíveis a manchar a própria credibilidade do que a dourar intervenções de baixo valor.

Há quem, de forma romântica, tanto bem intencionada quanto simplória, misture em cuidados integrais ou multidimensionais (algo que todo paciente em tese merece) gradientes variados de valor COMO SE fossem tudo uma coisa só (apenas este é o problema, escolhas finais cada um que tenha as suas, não prejudicando terceiros).

Misturam, e não possuem sequer um modelo de financiamento para o CP estritamente técnico. Problema é que, paradoxalmente, ao invés de ajudarem na disseminação nacional, distanciam o feijão com arroz dos CPs de qualquer proposta de implantação sistêmica viável e sustentável.

Se é verdade que saúde é muito mais do que ausência de doença, é também inquestionável já estarem na fila brasileira, aguardando melhor incorporação, o CP estritamente técnico, um plano nacional que contemple determinantes sociais de saúde, o fortalecimento da APS, mas não somente, da prática generalista no Brasil, a valorização do tempo de atenção médica ao usuário e do trabalho cognitivo, etc.

Dualismo humano, natural,
não necessariamente criminalizável
Dizem defender o SUS, sistemas públicos e amplos de saúde, mas acabam com práticas holísticas inaplicáveis em larga escala sem necessário comprometimento de outras. Ou aplicáveis então apenas sob alguma forma de elitização, como quando acabam naturalmente em [seus] consultórios holísticos privados.

 

Parecem esquecer que, se aceitassem a existência de gradientes de valor, poderíamos em maior número, juntos, lutar pelas mesmas coisas, como através de voluntariados, vaquinhas digitais ou outras diversas opções de modelos complementares.

Parecem não querer até, para depois poder demonizar "o sistema", "o mercado" (que eu próprio critico sistematicamente inclusive). Mas, ironicamente, suas retóricas acabam por valorizar aquilo que muito especificamente oferecem (ou anseiam oferecer), num claro conflito de interesse, financeiro ou sentimental. Conflito esse que assume maior importância sempre que a motivação dos usuários não é espontânea, não parte predominantemente deles próprios - sempre que terceiros turbinam as expectativas.

Justificar intervenções por dimensões ou olhares que críticos não conseguem entender é discurso que unifica hemodinamicistas que brigam com os estudos científicos e as estatísticas em DAC estável, homeopatas e terapeutas alternativos/integrativos. Os dois últimos, ao falar da miopia do modelo biomédico tradicional (que existe) e ao demonizar as ditas tecnologias duras, usam apenas de retórica satélite - todos os três simplesmente querem fazer o que acreditam, como também urologistas com rastreio universal, fisioterapeutas com ventosas, etc. Se dissessem que defendem porque simplesmente "gostam", dariam inclusive uma espécie de xeque mate na tecnologia dura dos cardiologistas, que tanto abominam: ninguém seria capaz de defender stents porque simplesmente gosta. Já, para muitas práticas holísticas, é possível enxergar inúmeras que eu próprio ajudaria a defender sem necessariamente existir evidência impactando em desfechos clínicos relevantes. DESDE QUE não sequestre, do concorrido orçamento da saúde, recursos de intervenções de alto valor.

Muito do que faço porque simplesmente gosto ou me faz bem não tem evidência forte por trás. Gostaria de manter caso fosse hospitalizado, dentro do possível. Não é sobre isto o debate principal que compete a quem deseja pensar o sistema de cima, buscando justiça, equidade e sustentabilidade. 

LEITURA COMPLEMENTAR: Práticas Integrativas no SUS - quem são os dogmáticos?

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Está o movimento de Segurança do Paciente em perigo ou, ao menos, se distanciando de médicos "beira-leito" e de pacientes?

Segurança do Paciente ter ganho capilaridade no Brasil entre médicos eminentemente "beira-leito" através de movimentos dos quais fiz parte ou mesmo protagonizei é verdade, apesar de bastante parcial e questionável. Anestesiologistas puramente assistenciais já trabalhavam a causa muito antes de nós. Alguns movimentos eram também percebidos paralelamente na Medicina Intensiva brasileira, embora fortemente estimulados pela Enfermagem ainda. Talvez tenhamos sido os primeiros a chamar atenção para o tema de forma minimamente organizada como representantes médicos das usualmente negligenciadas enfermarias hospitalares. 

Num de nossos movimentos, traduzimos versões de Understanding Patient Safety.

Lucas Zambon foi meu parceiro naquela época e já apontava dados brasileiros de eventos adversos em salas de emergência (pronto-socorros). Essas unidades foram fisicamente aprimoradas ao longo dos anos (anatomicamente falando então, embora ainda preponderantemente uma anatomia não necessariamente pensada sob a perspectiva da segurança do paciente), mas muito pouco ganharam de fisiologia de organizações de alta confiabilidade (ou mínima confiabilidade mesmo). Para citar dois exemplos altamente comprometedores, PS's no Brasil seguem sendo território onde para atuar basta ser médico ou enfermeiro (qualquer profissional tendo um número de registro profissional, com qualquer formação a priori e qualquer interesse futuro) e muito pouco retêm profissionais para um carreira longa e sustentável naquilo que de fato é uma especialidade ou área de atuação profissional em muitos países com sistemas de saúde mais evoluídos.

PASHA2010 - Oficina de Segurança do Paciente
para aspirantes à hospitalista

Lucas Zambon apresentou o tema Segurança pela 
primeira vez para colegas que hoje palestram nele.

Atualmente não mais tenho o mesmo entusiamo pelo tema que cresceu muito, aqueceu negócios e mercados, promete mundos e fundos. Aliás, acho que tenho o mesmo entusiamo. Mas voltei a pensar nele como médico "beira-leito" apenas, o que absolutamente não acredito seja o melhor.

Parte dos meus questionamentos são também do autor dos livros acima, a exemplo dessas manifestações e reflexões de Wachter em 'Está o movimento de segurança do paciente em perigo?'. Parte diz muito especificamente ao tom pautado pelo business da Acreditação. Essa semana, revisitei meus anseios pessoais a partir de uma situação tensa do mundo trivial da Medicina (o mundo "real" aos olhos de quem a pratica na ponta), vejam só:

Ao longo de duas décadas, já perdi (que lembro) 3 pacientes em contexto onde sangue ou secreções atrapalharam ou retardaram intubações. Não sei se teria sido diferente fazendo coisas diferentes, ou mesmo estando outro médico no meu lugar, mas me culpo internamente, é assim...

Me envolvi numa situação semelhante agora. Mas quando, após larisgoscopar e não ver absolutamente nada, lembrei que uma otorrino estava próxima (vinha em atendimento por sangramento grave na mesma paciente, presumível epistaxe), disparei: "empresta o teu aspirador". E foi espetácular! Foi revelador! Foi simplificador! Enxerguei. E intubei. Como de costume. 

Normalmente utilizamos na UTI ou atendimentos do TRR umas sondas moles de aspiração, de rendimento pífio em situações de muito acúmulo e alta vazão de secreções ou sangue. Os otorrinos carregam um "Bico de Yankauer". Adapta ao mesmo sistema de aspiração dos leitos. De Inox, o aspirador custa 150 reais. É reutilizável após CME.  


Ocorre que nos emaranhamos em questões mal encaminhadas sobre Segurança do Paciente, seja por cenários específicos de idiotização, seja por comprometer práticas de bom potencial por falta de hierarquização ou planejamento integral (Menos Pode Ser Mais em Qualidade & Segurança). E nos esquecemos de ter uma mixaria de um aspirador destes na caixinha de intubação. Bem ou mal, a pandemia trouxe isso à tona também: nos emaranhamos em discussões fúteis e perdemos tempo precioso. Discuti isto aqui, e há ali descrição de como, mesmo antes da pandemia, UTI's - uma que eu mesmo coordenei - carecem de fisiologia de unidade minimamente confiável para abordar pacientes com insuficiência respiratória grave: não basta anatomia (o leito e o ventilador microprocessado de última geração), precisa da tal "fisiologia". 

Segurança do Paciente, em muitos cenários, perdeu o foco no paciente. Como já escreveu a antropologista Marilyn Strathern, com base na 'Goodhart's Law': 

          When a mesure becomes a target, it ceases to be a good measure.


Em outras palavras, se recompensas são acopladas à mensuração mais do que ao resultado propriamente dito, humanos darão um jeito (qualquer um) de "fazer por merecer". E, ao fazê-lo, com as coisas se acomodando de diversas formas, apequenam o valor do propósito da mensuração. 

Donald Campbell também escreveu:

The more any quantitative social indicator is used for social decision-making, the more subject it will be to corruption pressures and the more apt it will be to distort social processes it is intended to monitor. 


Meu envolvimento em Segurança do Paciente, além da assistência direta aos meus pacientes, dependente hoje da inclusão de pelo menos algumas dessas dimensões do processo, ou alguma outra da vida mais mundana dos hospitais:

  • VALORIZAÇÃO DAS PROFISSÕES PARAMÉDICAS;
  • RELAÇÃO ENFERMAGEM / FISIOTERAPIA POR LEITO ADEQUADA;
  • DESBUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO DE ENFERMEIROS E TÉCNICOS DE ENFERMAGEM;
  • BURNOUT;
  • QUALIDADE MÍNIMA NAS UNIDADES, ALÉM DE INSUFICIENTES RDC'S E MEDÍOCRES EAD'S.
Ontem, uma residente de primeiro ano de Medicina Intensiva chegou atrasada porque estava à noite na UTI de hospital vizinho como "A intensivista" - UTI que muito tranquilamente poderia receber familiares meus, pelas opções de hospitais que costumam utilizar em Porto Alegre.

Hoje, mostraram-me este teste pós-EAD para MÉDICOS comprovarem competência para início de atendimento de parada cardiorrespiratória em hospital também de POA:

Que mais poderíamos ter na lista? Fato é que precisamos, para cada profecia autorrealizável a ser trabalhada hoje pelos Departamentos de Qualidade e Segurança, investir também em um ítem realmente sensível da vida hospitalar cotidiana e aos pacientes. A "identificação do paciente" se resolve com investimento em tecnologia e menos romantização da prática....
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