Recentemente, escrevi um artigo para
Saúde Business enfatizando a
importância da padronização na área da saúde. Em diversos fóruns, surgiram comentários entusiasmados através de expressões como “padronização sempre”, padronização é tudo” e “a padronização é parente de primeiro grau da qualidade”. Essa metáfora do parentesco ajuda numa reflexão mais profunda:
A proximidade entre parentes nem sempre garante uma estrutura familiar mais funcional. Da mesma forma, a relação entre padronização e qualidade na saúde possui suas complexidades. Embora a padronização seja ferramenta em busca por consistência e uniformidade, sua mera aplicação não assegura qualidade. Analogamente, a presença de um parente próximo não garante sua capacidade de oferecer apoio ou solucionar problemas. Isso ilustra bem sistemas complexos, onde, mesmo com todas as precauções, ainda há espaço par desfechos primários negativos ou consequências negativas terceiras não intencionais.
Ao atuar uma vez como consultor de equipe de hospitalistas pediátricos, estávamos a fazer modelos de prescrição institucionais amparados em rotinas e protocolos pré-existentes na instituição. Enfrentamos dois cenários interessantes para essa discussão aqui:
1. Integrantes da média gestão, ao revisarem nosso trabalho, identificaram que, em nossos modelos, alguns itens estavam em gramas, outros em miligramas. Em nome de “padronização”, solicitaram tudo em grama, ou tudo em miligramas.
A ideia parece boa, não fosse o fato de que os médicos e os enfermeiros muitas vezes estão familiarizados com determinadas posologias. Um médico prescrevendo, ou um enfermeiro no processo inicial de execução de uma prescrição médica, pensando ou processando a partir de informações com as quais estão acostumados, podem mais facilmente evitar determinados erros. Por sua vez, quando partimos de uma informação familiar e precisamos recalcular a dose para adequar-se a um formato padrão distinto, esse é um momento que se torna perigoso.
Impossível não lembrar de
evento adverso famoso e público, que muito ilustrou aulas que dei nos anos 2000 sobre segurança do paciente, envolvendo gêmeos do famoso ator Dennis Quaid:
No Cedars-Sinai Medical Center, um médico familiarizado em prescrever heparina de um jeito específico o fez sem atentar-se para uma padronização diferente. Deu errado! Talvez não baste, então, apenas existir padronização. A familiaridade de um médico com um jeito específico de prescrever pode levar a erros significativos se não houver alinhamento com uma nova rotina.
2. As doses em pediatria são muitas vezes calculadas por quilo de peso dos pacientes. Trabalhamos modelos de prescrição incorporando medicamentos constantes em rotinas ou protocolos revisados por lideranças, e os colocamos em doses mínimas, acrescentando, como suporte à decisão clínica, a informação da respectiva dose por quilo. O hospital, por sua vez, nos exigiu que evitássemos informações para o prescritor nos modelos, pois "podem acabar na prescrição final e causar problemas". E é justo e louvável que tenham essas preocupações. Concluíram lembrando-nos que “o foco deve estar no paciente", "devem, então, chegar como modelos que lembrem prescrições prontas”.
Ao não oferecerem um modo alternativo de fazer, estavam, na prática, eliminando dos modelos quase todos os medicamentos, uma vez que a maioria exigia doses por Kg de peso. Levaria às suas inviabilidades.
Mas qual deve ser o propósito maior de modelos de prescrição institucionais?
a. Serem finais, prontos para a Enfermagem?
b. Servirem como uma forma de minimizar variações entre profissionais e ter uma prescrição final mais com "a cara do serviço", permitindo que seus componentes mais importantes estejam revisados pelas lideranças?
Sobre serem terminais, lamento contar: não será tangível, pensemos os modelos da forma que for. É uma ilusão acreditar que os modelos de prescrição podem abarcar todas as necessidades individuais dos pacientes, como medicamentos de uso prévio e alergias. Havendo ainda o interesse de não termos o paciente como um espectador passivo no processo, seria necessário lapidar qualquer prescrição final, por mais brilhantemente concebidos que sejam os modelos, com elementos refletindo as necessidades, os valores e as preferências, aproximando-se mais, aí sim, de uma abordagem verdadeiramente centrada no paciente. Serem "prontos para a Enfermagem" talvez signifique apenas “centrados na enfermagem”. Talvez representantes da Enfermagem possam estar apenas muito desejando que o trabalho chegue redondo para simples execução pelo grupo, o que é legítimo, inclusive! No mínimo, irão escutar menos apontamentos relativos à sua etapa do trabalho!
É evidente que o paciente deveria ser o foco central de todas as ações em saúde. Tão evidente que isso nem precisaria ser mencionado. No entanto, quando essa afirmação é constantemente repetida, pode indicar o contrário: num ambiente onde disputas de poder são comuns e muitas vezes legítimas - seja entre diferentes especialidades médicas, entre médicos e enfermeiros, entre profissionais de saúde e gestores, ou outras instâncias - e onde grupos muitas vezes buscam transferir problemas ou riscos para terceiros (o que, em certos contextos de sobrecarga, é até bastante compreensível), toda vez que ouvimos a frase "devemos focar sempre no paciente", é importante questionar se não há interesses secundários influenciando indevidamente o pretenso interesse primário.
Isso merece aprofundamento sob duas perspectivas importantes. Primeira, quando somos nós mesmos a usar a expressão. É uma excelente oportunidade para pausa reflexiva e avaliação se não estamos comprometendo nosso julgamento devido à influência indevida de interesses outros, por mais legítimos que possam ser. Segunda, quando a expressão é usada entre vários profissionais, todos com bom conhecimento sobre qualidade. Pode ser um forte indício de que está sendo empregada em contexto de disputas de poder ou busca por transferência de problemas ou riscos. E, sendo o caso, podemos perder o foco, aqui desviando das verdadeiras soluções para minimizar erros de prescrição, conforme constam na literatura especializada, tais como sistemas de alerta ou de suporte à decisão clínica, checklists para procedimentos de mais alto risco, educação e treinamento, revisão por pares e/ou por outros profissionais como farmacêuticos clínicos, integração de ferramentas como ajudando em cálculos de doses por peso ou superfície corporal, auditoria e feedback, entre outras.
Sobre servirem [os modelos de prescrição institucionais] como uma forma de minimizar variações entre profissionais e ter uma prescrição final mais com "a cara do serviço"? Sim, precisarão ser lapidados entes de liberação final. Do outro jeito, por sua vez, também! Cabe lembrar apenas que, originalmente, foram pensados justamente para serem nortes ou guias, tal como espelhos de protocolos. Se pensarmos modelos de prescrição para substituir a prescrição médica individual final, incorreremos no mesmo erro de confiar na inteligência artificial sem validação médica final, pelo menos nos dias de hoje.
Intervenções baseadas em boa intenção muitas vezes são implementadas com o objetivo de melhorar a qualidade. No entanto, é importante reconhecer que não necessariamente resultam em melhoria. Em alguns casos, podem até mesmo gerar consequências negativas não intencionais. O conceito de "
muitas mãos" entra em jogo nesse cenário também, onde diferentes atores e partes interessadas oferecem ideias e propostas para a melhoria da qualidade, muitas vezes criando um cenário mais difícil do que o necessário.
Em paralelo a tudo isso, uma outra noção é essencial ao se discutir modernamente qualidade assistencial e segurança do paciente: cabe a qualquer ação contemporânea centrada em pacientes incluir em sua equação formas de facilitar o trabalho em linha de frente. Qualquer um que não ignora as consequências negativas da burocratização da prática médica e de enfermagem acaba por entender que facilitar a vida dos prestadores de serviço é também um dos pilares modernos para melhorarmos desfechos de nossos pacientes. Atualmente, provavelmente pouco existe de solução boa para pacientes que crie muitas dificuldades ou barreiras para o profissional executor. Historicamente, os médicos e os residentes fizeram os próprios modelos de prescrição para facilitação. Se agora queremos, como hospital, adequação às rotinas e protocolos institucionais, será altamente inteligente casar ambos objetivos (padronização e facilitação), alinhar esses interesses... Podemos jogar fora a criança junto da bacia com água se quisermos a perfeição do risco zero. A ideia de modelos institucionais é ótima demais para correr um risco dessa natureza.
Em resumo, a busca pela excelência na qualidade assistencial e segurança do paciente requer um equilíbrio delicado entre padronização e flexibilidade, centrado sempre nas necessidades e bem-estar do paciente. É essencial reconhecer e superar os desafios apresentados pela complexidade dos sistemas de saúde, garantindo que intervenções bem-intencionadas não resultem em consequências não intencionais. Ao alinhar os interesses de todas as partes envolvidas e promover uma cultura de colaboração e aprendizado contínuo, podemos avançar na direção de uma assistência de saúde mais segura, eficaz e verdadeiramente centrada no paciente.