sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Experiências que adquiri com a Choosing Wisely Brasil e o movimento hospitalista me fazem temer bastante um tipo de médico "less is more":

Já escutei algumas vezes de gestores de programas com hospitalistas em redes verticalizadas elogios a perfis profissionais camaleões que atuavam de um jeito completamente diferente no fee for service das contas abertas, moldando-se brilhantemente ao modelo deles.

Será que não percebem?

Qual segurança e sustentabilidade devemos esperar de uma prática em saúde que não seja "menos é mais" por foco no paciente? Que não se permite, automaticamente, ser "mais é melhor" quando mais é simplesmente melhor? Que confunde racionalizar e racionar!

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Cuidado para "abordagem multimodal" não acabar ajudando mais aos grupos profissionais do que aos pacientes.

Cerca de um ano acompanhando informalmente o Serviço de Dor de meu hospital serviu-me para duas conclusões envolvendo sofrimentos crônicos:

1. A tal abordagem multimodal é importantíssima, fundamental, porque não dizer inegociável para quem precisa sustentar resultados a longo prazo;

2. O multimodal, entretanto, pode esconder maneiras perversas de acomodar interesses, servindo para apaziguar zonas de tensão que, pelos pacientes, devem existir; quando ignora que um dia do paciente tem 24hrs e que ainda deve acomodar uma boa parcela do tempo para sono de boa qualidade, cria um potencial problemão organizacional para a pessoa e sua rede de apoio.

Ao longo do período acompanhando o Serviço de Dor, realmente aprendi e assimilei o caráter multifacetado do sofrimento crônico:



Assimilei ainda que uma abordagem multimodal é indiscutivelmente o melhor caminho, podendo incluir não apenas intervenções farmacológicas e procedimentos como bloqueios, mas também intervenções não farmacológicas diversas, incluindo apoio psicológico e de serviço social, mudança de estilo de vida, medicina física e de reabilitação, bem como práticas complementares/alternativas:



Aquele um ano em contato com pacientes portadores de dor crônica me fez valorizar, mais do que nunca, trabalho multidisciplinar, as tais práticas complementares/alternativas e a soma de efeitos simultâneos para uma vida melhor, permitindo-me chamá-los hoje, com muitas limitações, de terapêuticos. 

O multimodal, entretanto, esconde maneiras perversas de acomodar interesses, servindo muitas vezes apenas para apaziguar zonas de tensão que, pelos pacientes, devem existir. Um exemplo disso:

No trabalho para a Choosing Wisely Brasil, recentemente discutimos uma recomendação que trazia:

Não realize [intervenção X] isoladamente!
O texto de apoio, uma "narrativa multimodal". 

Ao analisarmos as referências bibliográficas utilizadas para formulação da recomendação e do respectivo texto de apoio, todas são categóricas em apontar que a intervenção X está profundamente estudada, sem demonstração de eficácia. Filosoficamente falando, a ciência não comprova ineficácia. Na prática, entretanto, é isso que as revisões sistemáticas dizem. 

Quando apontamos o fato, uma resposta bastante espontânea foi: "mas os representantes da intervenção X não irão gostar". 

Ora, ora... Então há um problema dentro da abordagem multimodal: o foco fugiu do paciente! Apenas facilita bastante profissionais com atuações distintas dividirem terreno...

Para fins de exercício reflexivo adicional, imaginemos uma intervenção Y com alguns evidências não confirmatórias a seu favor, ainda assim uma conclusão do tipo "não foi possível confirmar se a intervenção é eficaz no alívio da dor". Não querer suprimi-la do pacote multimodal deve eximir nossa responsabilidade de apontar que outras intervenções, como A, B, C e D são amparadas em evidências de melhor qualidade? Deve Y, como orientação geral, tirar espaço de A, B, C e D??? Não representa, sem a informação completa, concorrência desleal com A, B, C e D, quando no calendário do paciente não cabe tudo?

Ao ignoramos que um dia do paciente tem 24hrs e que ainda deve acomodar uma boa parcela do tempo para sono de boa qualidade, cria-se um potencial problemão logístico para a pessoa e sua rede de apoio. Quem já foi paciente ou familiar de doente crônico tem alta probabilidade de saber...

Uma narrativa multimodal pode e deve ser melhor aproveitada de outras maneiras, como ao estimular combinação de agentes farmacológicos, potencialmente minimizando efeitos adversos de doses elevadas. Como ao combinar intervenções que abrangem as diversas facetas do quadro. Como ao reconhecer e identificar alternativas terapêuticas entre tratamentos de segunda e terceiras linhas, algo com enorme potencial em "corridas de longa distância" - como são agravos com sofrimentos crônicos -, uma vez que é esperado que pacientes tenham fases em que irão fadigar de uma ou outra intervenção, ou estarão com menos recursos para alguma delas, ou alterarão gostos e preferências, altamente relacionados com efeitos simultâneos. E sendo bem direto sobre efeitos simultâneos: intervenções dessa natureza devem respeitar necessariamente gostos e preferências dos pacientes, jamais dos terapeutas. 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

O movimento hospitalista e o da qualidade assistencial / segurança do paciente confundiram-se muito nos EUA. Por vezes é até difícil de discriminar o ovo e a galinha dessa história lá. Muitos hospitalistas assumiram cargos de grande destaque em qualidade e segurança, muito além das enfermarias clínicas:

No Brasil, gerentes ou coordenadores médicos de qualidade/segurança, quais sejam suas origens, ainda pecam em reconhecer qualidade e segurança. São vistos fazendo escalas, organizando férias, buscando substitutos para licenças saúde, liderando discussão sobre comprar um aparelho de VMNI ou um de ecografia, e outras tantas coisas do gênero, algumas delas feitas por assistentes administrativos lá.

Isso acontece por diversas razões. Uma delas é que, no Brasil, a organização geral das atividades dos Programas de MH ainda é muito centrada no médico e não cultivamos o verdadeiro trabalho em equipe ou dispomos de estrutura para tal. E a organização eminentemente assistencial ainda muito centrada em um médico e um enfermeiro apenas.

Outra é que não dominamos, em larga escala, melhoria da qualidade, ciência da melhoria e gestão de risco, para de fato entregar em qualidade assistencial / segurança do paciente. Não bastasse, gestão de processos cotidianos, com foco em melhoria contínua, envolve muito mais do que habilidades técnicas. A parte comportamental requer reconhecimentos técnico-específico e pessoal, além de muita, mas muita, habilidade social. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Se você é um paciente, fuja de enfermarias onde há um médico diferente a cada dia!

 Artigo primeiramente publicado em Saúde Business.


   Duas são confusões frequentes na discussão sobre Medicina Hospitalista (MH). Uma é a interpretação errônea de que hospitalista é médico de Time de Resposta Rápida (TRR). A outra é sobre plantões.

 

   A primeira já discutimos algumas vezes: em Saúde Business e aqui. O mais bizarro desta confusão é que justamente a pessoa que cunhou o termo hospitalista e é considerada a grande referência mundial desta área de atuação médica faz críticas fortes aos TRR’s: veja aqui

 

   A segunda passa a ser o enfoque de nosso texto, a partir daqui:

 

   Como os conteúdos em inglês sobre hospitalistas geralmente empregam as palavras “shift” e “schedule”, muitos que os leem percorrem atalho cognitivo e inferem que está completamente Ok organizarem hospitalistas brasileiros em modelo com um médico diferente a cada dia, em “escala de plantão”. 

 

   Esta interpretação equivocada decorre de duas situações:

 

1.   Da confusão com TRR – e em TRR’s não há tanto problema em alocar um profissional diferente a cada dia em razão de objetivo primário distinto: é atendimento de intercorrências, não é coordenação do cuidado;

 

2.   Da não observação atenta do significado de “shift” e “schedule” no modelo hospitalista por muitos considerado benchmarking internacional:

 

   Apesar de existirem hospitais norte-americanos com programas de MH organizados com um médico diferente a cada dia, é realidade de hospitais ruins, de enfermarias pouco atentas à qualidade assistencial e à segurança do paciente.

 

   Definitivamente NÃO é assim que atuam os hospitalistas de Wachter, na UCSF (cujo programa conheci in loco nos já distantes 2007), ou o hospitalista Aaron, em Denver, (cujo programa conheci em 2011); ou o hospitalista Joe, em Boston(conheci em 2015); ou o hospitalista Matthew, em Chicago(2019); ou o hospitalista Efren, em Miami e da foto abaixo; ou qualquer outro hospitalista de destaque que já conheci. 

 



   Acontece que “shift” e “schedule”, para eles, não significa um médico diferente a cada dia, muito pelo contrário. Costumam organizar-se em blocos, como se “rotinas em blocos”, que podem representar intervalos de 7 ou 14 dias (a depender dos tempos médios de permanência dos pacientes nas respectivas enfermarias). Dessa forma, os bons centros buscam, ao máximo possível, garantir continuidade e que, durante o período diurno, cada paciente tenha o contato com o menor número de hospitalistas possível. 

 

   Em um mundo de fantasia, pensado apressadamente por quem leu e está atualizado sobre prevalência e relevante impacto de erros de transferência e de troca de informações nos hospitais, os pacientes ficariam sempre no mesmo lugar na organização, e seriam cuidados por um 01 único médico e 01 único enfermeiro. Mas este mundo é surreal: ignora ritmo circadiano e a importância do trabalho em equipe frente à complexidade da Medicina contemporânea, entre outras armadilhas. Qual profissional da saúde quer um mundo ou hospital assim?

 

   Ao admitirmos que algumas transições são necessárias, uma pergunta razoável seria se é necessário ter tantas delas no cuidado à saúde. A resposta é sim e não: turnos demasiadamente longos de trabalho estão associados a erros secundariamente à fadiga; transições estão fortemente relacionadas a eventos adversos. É na busca de um equilíbrio que todos os bons programas de MH buscam longitudinalidade / atendimento continuado diuturnamente, deixando as transições para os entrelaces como os turnos das noites, por exemplo. 

 

   Equilíbrio, em uma última instância, seria pautar o possível, com o paciente no centro da discussão. Passa longe de pautar modelos de assistência médica nos hospitais onde as escalas de cobertura são confeccionadas com foco principal na conveniência de médicos, muitas vezes sem disposição para atuar na casa mais do que 1-2 vezes por semana. 

 

Materiais complementares: 

 

Crítica ao cuidado baseado em plantões 

Qual a melhor escala para distribuição de hospitalistas? 

 

Trabalho em equipe e comunicação no ambiente hospitalar: hospitalistas e outras ferramentas 

 

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Saúde Baseada em Valor! VBHC! Mas Valor PARA QUEM exatamente?

Esta pergunta sempre vem à minha mente: Valor para quem? Já pensei alto sobre o tema aqui. Ainda tenho pensado bastante sobre esta outra questão 👇


No início do movimento no Brasil em defesa da promoção do hospitalista, eu não apenas falava em compartilhamento de risco. Eu pedia para ser o "ratinho das pesquisas". Oferecia-me, e a meu grupo, para experimentar novos modelos.

Ainda não tenho conclusão final sobre a iniciativa acima, mas possuo reflexões para compartilhar:

  • Há um problema conceitual grave nesta ação. Desconsideram que um pool de pacientes em tratamento sofre desfecho de igual forma, mesmo que a droga seja maravilhosa. Reforça a falácia de que remédio tem ação dicotômica.
Aí você poderia responder: "não desconsideram não! Até escrevem que "em alguns deles o medicamento pode não surtir o efeito desejado". Questão é que não se trata de uma falha exatamente: tratamento dessa natureza costumam ser mesmo "pílula de probabilidade" (apenas).
Não é falha de uma droga que o paciente teve um evento futuro a despeito da droga. Nenhuma elimina completamente risco futuro. Portanto, é uma regra baseada em uma espécie de mentira clínica. Ainda mais que muito do que funciona (no presente caso, previne) não necessariamente está relacionado ao medicamento: há normalmente sortudos no grupo controle também. É definitivamente uma regra baseada em mentira clínica.
  • Segundo, isso poderá estimular uma espécie de monopólio?????
  • Terceiro: se a moda pega e passa a incorporar medicamentos ineficazes ou de baixo valor, em cenários de prevenção de eventos infrequentes especialmente, reconhecendo que usualmente a conta final final é repassada para um terceiro (não precisa dizer quem é, né?!), não vai acontecer de hospital e farmacêutica inverterem eventualmente os papéis, deixando a receita que de fato impacta ser por eles próprios dividida? Atentem-se que nesta "inovação" o hospital muito provavelmente segue na figura de 'varejista de insumos', farmacêutica e hospital seguem negociando valores, sendo o verdadeiro pagador o plano de saúde ou o paciente privado. Não?  

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Para ser hospitalista, não necessariamente é preciso ser empregado do hospital.

Não é hora da MH brasileira prender-se em fórmulas e rótulos.
Devemos manter a mente aberta e não parar de exercitar o think different.

Demos buscar as melhores oportunidades possíveis,
analisando toda e qualquer alternativa.


Clique na maça e leia artigo em Saúde Business.

 

terça-feira, 18 de abril de 2023

Tenho, no meu núcleo familiar atual, alguns exemplos de pioneirismos que se consolidaram como iniciativas duradouras. O pai, com sua história na Unicred. A Claudia, como uma das personagens centrais de área de atuação médica contemporânea: Via Aérea Pediátrica. Preditores de sucesso, que anedoticamente identifico:

- Sempre exaltaram os que ajudaram a pavimentar o terreno, pioneiros de etapas anteriores.

É o que historicamente tantas vezes vi o pai fazer ao resgatar os legados de Antônio Moacyr de Azevedo e Osvaldo Carlos dos Santos:
   

É o que recentemente vi também Cláudia fazer, contanto a história da Via Aérea Pediátrica no Brasil, como muito começou com Ivo Kuhl e conhecimentos que ele gerou a partir de pacientes adultos ainda. Relatando, no seguimento, a importância de Gabriel Kuhl para a pediatria propriamente dita:
 

 
- Outra característica é que, mesmo cercados por competição (natural em nosso meio), nunca enfrentaram níveis de competição completamente contraprodutivos, gerados por ganancias incontroláveis ou narcisismos extremos.

Quando Cláudia contou que, não muito depois do final da Segunda Guerra, o Prof Ivo Kuhl entrou em navio, rumo à Boston, e de lá trouxe as bases para a Laringologia moderna brasileira e sementes para a Via Aérea Pediátrica, não pude deixar de lembrar da história da Medicina Hospitalista brasileira, guardadas as devidas proporções. Da época em que, ainda médico residente, gastei o que não devia em sã consciência para visitar Robert Wachter e seu Programa de MH na Califórnia, depois comparecer a evento da Society of Hospital Medicine. Desta “raiz” ainda brotam praticamente todas as iniciativas atuais no Brasil sobre hospitalistas, de mais variados grupos, em especial quando envolvem conexões com norte-americanos. A história, quase toda, começou lá em São Francisco / Dallas.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Seleção e Recrutamento em Medicina Hospitalista é etapa fundamental, não possuindo formulismo universal.

Abaixo um exemplo que envolve perfis de hospitalistas e, por conseguinte, recrutamento e seleção:


Já observei hospitalistas do tipo “super-heróis” funcionarem muito bem em perfis de organização em que um trabalho minimamente focado nos princípios do modelo relacionados à eficiência parte, começa, de uma assistência caricaturalmente disfuncional. De uma realidade onde, por exemplo, trabalho em equipe é algo para depois, de tantos outros desafios que existem e devem ser priorizados. 


Na “assistência caricatural”, é muito fácil determinar impacto em indicadores de eficiência. Basta o norte a ser perseguido e bastante juventude com empolgação. Se junto disso empregamos ativamente o vocabulário da gestão com os gestores, parecemos médicos de outro planeta até. Ou de Krypton mesmo.

Nunca esqueço de experiência em hospital onde, na realidade até o ingresso de hospitalistas, havendo um estacionamento com múltiplos andares e o mais alto descoberto, onde a vista era sensacional, pacientes deslocavam-se até lá em dias de sol, colocavam cadeiras de praia e faziam animadas rodas de chimarrão junto a familiares. Ficavam hospitalizados por tanto tempo sem verdadeira indicação médica, que reduzir drasticamente o tempo de permanência e promover giro de leitos lá foi como “tirar doce de criança”. O grupo até pode tentar tirar proveito, fazer uma bela apresentação de PowerPoint, atribuir o resultado a algum "framework for reducing LOS", mas aqui basta juventude com empolgação e norte. 

Mas nem sempre é assim. A depender da realidade basal*, pode acontecer de ser muito mais difícil. E faz parte. Sequer é ruim - é sinal de que o ponto de partida é uma realidade já, no mínimo, razoável. Melhor.

Sob outra perspectiva, a depender dos pacientes, de eventuais perfis que demandam verdadeiro trabalho em equipe entre especialidades médicas ou atuação multiprofissional, hospitalistas do tipo “super-heróis” podem não se sair tão bem, e a seleção de um com mais soft skills pode ser até mesmo estratégica. Alguns chamam estes “hospitalistas super-heróis” de “médicos cowboys”, e discute-se bastante como trazem consigo características negativas para qualidade assistencial, segurança do paciente e boas práticas modernas. Exemplos aqui, aqui e aqui.


De tal forma que normalmente sugiro recrutamento e seleção cuidadosos do(s) futuro(s) hospitalista(s), com participação de profissional de RH. Cabe discussão pacienciosa de vantagens e desvantagens de estilos profissionais. Há até livros dedicados ao tema, com o mais conhecido aqui.

Vocês médicos lembram do conceito de redução de risco absoluto (RAR) da clínica? De que a RAR não depende apenas da terapia médica, mas também do risco basal do paciente? Que está medida, assim como o NNT, varia de paciente para paciente? Relembrem mais aqui. Gestores não-médicos podem adquirir preciosa lição de outra área buscando compreender a questão também.

O conceito é interessante para discutir gestão de modelo hospitalista e do comportamento a ser adotado por equipes em diferentes locais / diferentes culturas. Serve de analogia ainda para entender complexidade de Ciência da Implementação e porque pode não ser nada fácil replicar cases de sucesso, servindo soluções até simplórias para determinados cenários, enquanto em outros o furo será muito mais embaixo.

Outras Leituras Complementares:

Recruiting? Make sure you hire right

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pode existir algo muito errado quando diagnósticos não são feitos na proporção relatada na literatura...

O que explica um médico cuidar de um certo perfil de pacientes por quase 20 anos, e só passar a ver um determinado diagnóstico depois de relacionamento amoroso, nos últimos anos?


Essa história é anedótica, mas talvez traga ensinamentos importantes…

Intensivista, acostumado com o pacote ´tubo orotraqueal / extubação / estridor / rouquidão / disfagia / eventuais falhas de extubação´, muito pouco fazia diagnóstico de comprometimento de corda vocal até conhecer uma laringologista especialista em via aérea.

Aí aprendeu que, entre especialidades diversas que abordam via aérea, algumas se saem melhor da traquéia para baixo, outras da laringe para cima... Que aquela fibro feita antes de extubar, que traciona o tubo e somente avalia razoavelmente bem da sua extremidade para baixo, deixa pendente muitos dos diagnósticos diferenciais dali pra cima.... Que muitos diagnósticos de via aérea são melhor feitos com o paciente já extubado e sob avaliação dinâmica. 

Antes do aprendizado, por vários anos, quase nenhum diagnóstico de paralisia de corda vocal. Que falha individual grotesca, não? Além de falta de curiosidade por anos a fio… Depois do "treinamento", deflagrou algumas triagens adequadas e viu fazerem alguns diagnósticos além de estenoses traqueais. 

No caso mais recente, viu paciente precisar de medialização ativa da prega vocal por laringologista, após não responder a fonoterapia.

Considerando que muitos desses tratamentos costumam ser condicionais (ou seja, a conduta só modifica se a etapa anterior falha), perspicaz a pergunta sobre a necessidade de uma avaliação completa precoce desses pacientes...

Ocorre que um granuloma (diagnóstico diferencial) já costuma demandar intervenção cirúrgica imediata e simples pelo laringologista…

Então, será mesmo um problema do intensivista em particular? Uma questão individual? Ou é desafio organizacional, sistêmico e até cultural? Não será, em parte, porque fizemos tudo sempre igual?

O intensivista era eu. As oportunidades de triagem sempre passaram ainda por outros profissionais e, quando passei a considerar mais a questão, segui vendo oportunidades serem ignoradas. No histórico tão prolongado, passei por UTIs sem adequado backup multiprofissional também. 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Incomodam-me certos esforços inesgotáveis para justificar intervenções "não tecnológicas” ou "não medicalizantes" em saúde. “Porque saúde é um conceito mais amplo”. E absolutamente é…“Condensam em si as relações de interação e subjetividade”. E daí vai… Todo tipo de retórica é empregada, por vezes altamente elaborada...

Uma forma talvez melhor de conduzir a questão é tentar situar sobre valor terapêutico (ciência de avaliação de tecnologia em saúde) e depois sobre financiamento. Não precisa ter grande valor terapêutico para atender anseios individuais ou de grupos (na verdade, não precisa nenhum), mas há como o Estado ou planos de saúde financiarem diretamente tudo? Acreditando que não, há alternativa: buscar viabilizar coisas que são apenas proxies de soluções heterogêneas, extremamente dependentes de valores e preferências, de maneira indireta.

Através dos canais da Choosing Wisely Brasil, já recebemos bons arrazoados de pessoas justificando escolhas por intervenções que chamamos de “ilusórias”. E tudo acaba na legítima justificativa de que fazem bem [para eles], seja lá como for. Por vezes, são tecnologias duras e, então, pergunto: por que certas terapias alternativas e seu custeio coletivo podem ser justificados até pelo lado místico ou social, e ilusões de controle, que para muitos “acalenta o espírito”, não? Pessoalmente, sequer entendo o fetiche de pessoas por exames e medicalização da vida, mas será um bom rumo para esta discussão julgar valores e preferências? 

Por que não intervenções médicas de caráter, por exemplo, puramente estético - que por outros critérios subjetivos podem ser defendidas por aumentar auto-estima e impactar em bem-estar geral - e por que sim o que combina com os teus valores especificamente? 

Por que exames como rastreios controversos não podem ser justificados por necessidade de “fazer algo” e outras cositas do gênero que simplesmente amenizam angústias emocionais ou espirituais pela via natureba devem até ser pagas por mecanismo de financiamento coletivo? Quem defini o que preenche a “alma” de cada um para um produto ser "universal"? 

Essas questões colocadas em franca oposição são simplesmente mais um exemplo de visão binária de mundo, tão prevalente. Entre um extremo e outro, há, no entanto, várias possibilidades. Como, por exemplo, fomentar anseios e gostos por vias indiretas. Pode promover igual Estado de Bem-Estar Social! Pode permitir acesso individual ao cardápio de serviços e até mesmo ampliar possibilidades de escolhas! Através de rede de proteção ao trabalho e geração de novos. Ou de serviços sociais, como Previdência, justos e sustentáveis. Ou de um processo estruturado e saudável de redistribuição de renda… Há várias formas de financiar as coisas. E até mesmo misticismo ou placebos que gostemos. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Que 2023 abra mais as nossas mentes

Visão dicotômica nos debates é uma verdadeira tragédia. Inviabiliza. Nada se contrói. Vem sendo o trecho final de muitas conversas e cada vez mais. Que 2023 nos aproxime de gente capaz de escapar da armadilha e ilumine a cada um de nós também, uma vez que a tendência puxa, e puxa forte...

Ontem, em discussão sobre armas, escutei um "tomara que não ocorra de ser assaltado em 2023, acabando com uma bala na cabeça". Era tão evidente o desconforto e o ressentimento, que saiu como "tomara que seja assaltado em 2023 e acabe com uma bala na cabeça - para aprender".

É essencialmente como acabam muitos "debates" sobre rastreamento de doenças na saúde. "Tomara que tenha um câncer ou infarto correndo - para aprender". Já escutei parecido de dois colegas e amigos, com o adendo de que torciam por um evento não complicado, apenas como "lição".

Como se também não me preocupasse a criminalidade no Brasil. Como se também não morresse de medo de assaltos. Como se não temesse os riscos... De latrocínio e ou doenças ameaçadoras da vida...

Não importa para o maniqueísta que você ceda em vários pontas da conversa. Por vezes nem se trata de ceder: Eu realmente entendo a necessidade de armas em propriedades rurais isoladas. E eu até defenderia o direito individual ao porte, se junto houvesse uma debate profundo e avaliação de ações visando minimização das consequências negativas não intencionais. Mas não permitem críticas. A outra perspectiva os atinge e os cega...


Por isso cansa tanto (e muitos desistem) discutir rastreamento racional de doenças e hierarquia dessas intervenções na saúde pública. Você é agredido se eventualmente ponderar por abrir mão de alguma abordagem até mesmo eficaz, mas com magnitude de efeito pífia, para foco, ao menos inicial, em outras mais impactantes. Todo mês colorido é para a doença mais importante do mundo. O fato de serem importantes, é razão para justificar qualquer ação. É o debate dos preocupados versus os que não estão nem aí. Dos atentos versus os que ignoram o óbvio. Dos bem intencionados versus os mal intencionados. Dos bons versus os maus. 😏