segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Cuidado para "abordagem multimodal" não acabar ajudando mais aos grupos profissionais do que aos pacientes.

Cerca de um ano acompanhando informalmente o Serviço de Dor de meu hospital serviu-me para duas conclusões envolvendo sofrimentos crônicos:

1. A tal abordagem multimodal é importantíssima, fundamental, porque não dizer inegociável para quem precisa sustentar resultados a longo prazo;

2. O multimodal, entretanto, pode esconder maneiras perversas de acomodar interesses, servindo para apaziguar zonas de tensão que, pelos pacientes, devem existir; quando ignora que um dia do paciente tem 24hrs e que ainda deve acomodar uma boa parcela do tempo para sono de boa qualidade, cria um potencial problemão organizacional para a pessoa e sua rede de apoio.

Ao longo do período acompanhando o Serviço de Dor, realmente aprendi e assimilei o caráter multifacetado do sofrimento crônico:



Assimilei ainda que uma abordagem multimodal é indiscutivelmente o melhor caminho, podendo incluir não apenas intervenções farmacológicas e procedimentos como bloqueios, mas também intervenções não farmacológicas diversas, incluindo apoio psicológico e de serviço social, mudança de estilo de vida, medicina física e de reabilitação, bem como práticas complementares/alternativas:



Aquele um ano em contato com pacientes portadores de dor crônica me fez valorizar, mais do que nunca, trabalho multidisciplinar, as tais práticas complementares/alternativas e a soma de efeitos simultâneos para uma vida melhor, permitindo-me chamá-los hoje, com muitas limitações, de terapêuticos. 

O multimodal, entretanto, esconde maneiras perversas de acomodar interesses, servindo muitas vezes apenas para apaziguar zonas de tensão que, pelos pacientes, devem existir. Um exemplo disso:

No trabalho para a Choosing Wisely Brasil, recentemente discutimos uma recomendação que trazia:

Não realize [intervenção X] isoladamente!
O texto de apoio, uma "narrativa multimodal". 

Ao analisarmos as referências bibliográficas utilizadas para formulação da recomendação e do respectivo texto de apoio, todas são categóricas em apontar que a intervenção X está profundamente estudada, sem demonstração de eficácia. Filosoficamente falando, a ciência não comprova ineficácia. Na prática, entretanto, é isso que as revisões sistemáticas dizem. 

Quando apontamos o fato, uma resposta bastante espontânea foi: "mas os representantes da intervenção X não irão gostar". 

Ora, ora... Então há um problema dentro da abordagem multimodal: o foco fugiu do paciente! Apenas facilita bastante profissionais com atuações distintas dividirem terreno...

Para fins de exercício reflexivo adicional, imaginemos uma intervenção Y com alguns evidências não confirmatórias a seu favor, ainda assim uma conclusão do tipo "não foi possível confirmar se a intervenção é eficaz no alívio da dor". Não querer suprimi-la do pacote multimodal deve eximir nossa responsabilidade de apontar que outras intervenções, como A, B, C e D são amparadas em evidências de melhor qualidade? Deve Y, como orientação geral, tirar espaço de A, B, C e D??? Não representa, sem a informação completa, concorrência desleal com A, B, C e D, quando no calendário do paciente não cabe tudo?

Ao ignoramos que um dia do paciente tem 24hrs e que ainda deve acomodar uma boa parcela do tempo para sono de boa qualidade, cria-se um potencial problemão logístico para a pessoa e sua rede de apoio. Quem já foi paciente ou familiar de doente crônico tem alta probabilidade de saber...

Uma narrativa multimodal pode e deve ser melhor aproveitada de outras maneiras, como ao estimular combinação de agentes farmacológicos, potencialmente minimizando efeitos adversos de doses elevadas. Como ao combinar intervenções que abrangem as diversas facetas do quadro. Como ao reconhecer e identificar alternativas terapêuticas entre tratamentos de segunda e terceiras linhas, algo com enorme potencial em "corridas de longa distância" - como são agravos com sofrimentos crônicos -, uma vez que é esperado que pacientes tenham fases em que irão fadigar de uma ou outra intervenção, ou estarão com menos recursos para alguma delas, ou alterarão gostos e preferências, altamente relacionados com efeitos simultâneos. E sendo bem direto sobre efeitos simultâneos: intervenções dessa natureza devem respeitar necessariamente gostos e preferências dos pacientes, jamais dos terapeutas. 

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