quinta-feira, 31 de março de 2011

O livro sobre segurança do paciente que não será publicado

Eu estava organizando algumas coisas e achei anotações relativas a livro que estava pensando em produzir. Não avancei além de algumas dezenas de páginas de Word com anotações soltas que fiz durante os anos 2009/2010 sobre casos clínicos. A ideia era preparar um livro espelhado em Internal Bleeding: The Truth Behind America's Terrifying Epidemic of Medical Mistakes e adaptado à realidade brasileira.

Vinha trabalhando na época em um hospital referência no atendimento do Sistema Único de Saúde e pretendia desenvolver um trabalho que discutisse o assunto dos erros na assistência à saúde de maneira absolutamente construtiva. Quando desenhei na minha cabeça o livro, só considerei fazê-lo com apoio da alta direção do hospital.

Fui me tornando aos poucos, nesta instituição, um médico descontente e descomprometido (conceito adaptado de Press Ganey Associates, Inc). Não tenho vergonha de reconhecer, pois percebo isto como bastante comum e é um assunto que deve ser mais e melhor discutido. Aos poucos, fui percorrendo os seguintes estágios: satisfeito e comprometido, descontente e comprometido, chegando à situação de descontente e descomprometido. Neste momento, decidi sair. E passou a ser obrigatório sepultar a ideia do livro. Por quê?

Porque somente seria escrito da maneira adequada, como manda o moderno movimento de segurança do paciente, se eu ainda fosse um médico satisfeito e comprometido com o hospital. Para então eu trabalhar com a alta direção a publicação de casos da própria instituição onde caminhos mais seguros poderiam ter sido trilhados e ter a confiança e o respaldo deles para tornar isto público e discutir. A ideia inicial era fazer um trabalho que elevasse o nome da organização por traduzir uma cultura de segurança moderna e solidária. Eu teria que peneirar entre os casos aqueles onde o problema acontecido fosse inequivocamente de processo assistencial dentro de uma visão sistêmica e jamais causado por erros de um profissional individualmente ou de uma deficiência muito própria da instituição e que acabasse por expo-lá perante concorrentes e usuários. Seriam explorados apenas eventos ou circunstâncias que poderiam resultar, mas não resultaram, em dano desnecessário ao paciente. O foco não seria culpabilidade, mas uma discussão madura de como aprender com os fatos ocorridos e melhorar o Sistema Único de Saúde de uma forma global.

O bom senso me obriga a abandonar a ideia. Eram histórias como estas abaixo que seriam filtradas e trabalhadas. Nem todas aqui preenchem os critérios que identifiquei acima e não necessariamente constariam no livro:

Paciente E, feminina, 44 anos, internou no hospital via emergência no dia 30 e na enfermaria no dia 31. Discuti o caso com residentes de Clínica Médica pela primeira vez no dia 3 à tarde. Portadora de artrite reumatóide e usando Prednisona, Metotrexate e Adalimumab, internou por febre, calor, rubor e dor na região auricular esquerda, drenagem de secreção. Não foi realizada otoscopia na enfermaria por “otoscópio sem pilhas”. Não havia nenhum registro do PS de realização de otoscopia. Avaliação da Otorrino havia sido solicitada no dia 30, e não tinha sido realizada até o dia 3. Achados de tomografia computadorizada sugeriam otomastoidopatia inflamatória aguda à esquerda. Houve melhora importante dos sintomas com antibioticoterapia endovenosa e analgesia. A paciente evoluiu satisfatorialmente e teve alta para que fosse vista pela Otorrino ambulatorialmente.

 Pontos que poderiam gerar discussões interessantes:

- Ausência de exame físico completo durante toda a internação, enquanto não faltou a solicitação do exame tomografia, por mais necessária que fosse. A paciente poderia ter um corpo estranho no canal auditivo;

- Final de semana inteiro com residentes de Clínica Médica sem supervisão; ausência de preceptoria ou sistema de retaguarda oficial em tempo integral. No livro Understanding Patient Safety, de Wachter, ele fez um capítulo específico sobre isto, e seria bastante rica a discussão baseada na nossa realidade e legislação. The residents “needs enough rope to hang themselves, just not enough to hang the patient”. O assunto é complexo e controverso.

- Consultorias: como melhorar a eficiência?

Paciente T, masculino, 60 anos, entrou no hospital via emergência no dia 28 e na enfermaria no dia 31. Ex-tabagista, internou com uma síndrome clínica compatível com o diagnóstico de provável pneumonia e com dor pleurítica. Prescrita antibioticoterapia imediatamente após sua chegada no PS, em desacordo com o protocolo da instituição para PAC. RX de tórax do dia 30, o primeiro realizado, evidenciou importante derrame pleural septado à esquerda. Chegou à enfermaria sem nenhum indício de sepse grave, com melhora da curva térmica após início do antibiótico, mas perdeu 5 dias de tratamento completo: havia indicação de drenagem de tórax e ela deveria ter sido interceptada ainda na emergência.

Paciente L, 64 anos, internou no hospital via emergência no dia 22. Portador de neoplasia de próstata avançada, com metástases ósseas, internou por sintomas gerais, bastante anêmico, necessitou de transfusão. No dia 24, foi visto na enfermaria, estava melhor das queixas que se faziam presentes na chegada ao hospital, mas apresentando dor no membro inferior esquerdo. Registro de queda do leito no dia 23. RX solicitado no dia 27, por piora da dor e porque a história de queda do leito veio à tona. Resultado liberado em 29: fratura transversa acometendo o acetábulo, porção superior da epífise femural e a linha ileopectínea esquerda. Avaliado pela Traumato no dia 1.


Vários aspectos de segurança do paciente e para melhoria de processos assistenciais poderiam ser explorados a partir destes casos.

Paciente E, feminina, 63 anos, internou no hospital via emergência no dia 13 e na enfermaria no dia 21. Internação hospitalar por icterícia e provas de colestase alteradas. Colecistectomizada no início de dezembro após episódio de pancreatite aguda leve por cálculo. Submetida à ecografia abdominal e colangio-ressonância, que não deram o diagnóstico. Definido plano de realizar CPRE desde que chegou à enfermaria, FA e BD foram aumentando progressivamente. CPRE feita dia 5, com cálculo distal que foi removido. Perceba o tempo transcorrido entre a admissão hospitalar e o procedimento que deu solução rápida e definitiva ao problema, viabilizando breve alta hospitalar. Reflita sobre complicações.

Quase junto deste último caso esteve internada na equipe uma moça com coledocolitíase. Ela esperou muito pela CPRE, apresentou melhora espontânea e, ao final, ameaçou a equipe de processo porque, segundo ela, quase foi submetida a um procedimento desnecessário. Infelizmente ela não compreendeu bem os fatos, mas não consegui ficar irritado ou magoado. Ela estava apenas exteriorizando sua compreensível irritação com o sistema...
"Nos tornamos acostumados e paralisados por nossos erros, passando a considerá-los efeitos colaterais inevitáveis de uma guerra heróica de alta tecnologia que a despeito disto parece estar sendo ganha. É como se estivéssemos passado os últimos 30 anos construindo um carro esportivo extremamente potente e equipado, mas não tivéssemos investido um centavo ou segundo tendo certeza se ele possuía amortecedores, cintos de segurança ou airbags." – Bob Wachter

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