segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

As dificuldades e os riscos da Medicina Hospitalar no Brasil

As dificuldades e os riscos da Medicina Hospitalar no Brasil: apresentar o modelo não foi fácil, mas o mais complicado está por vir.

Até 2004, praticamente não havia por aqui referências à Medicina Hospitalar. No Google Brasil, começaram a aparecer em 2004, a partir do site http://www.medicinahospitalar.com.br/, na época do Grupo de Estudos e Atualização em Medicina Hospitalar. É possível encontrar algumas outras poucas referências daquela época em língua portuguesa, mas não retratam muito bem o modelo.

Foi a partir de 2007 que o movimento começou a ganhar força. Ocorreu a fundação da Sociedade Brasileira de Medicina Hospitalar (SOBRAMH) e, em 2008, o I Congresso Brasileiro de Medicina Hospitalar. Daí para frente, a discussão tornou-se cada vez mais intensa e é possível dizer que em 2010 os hospitalistas estavam devidamente apresentados aos brasileiros.

Agora já há inúmeras pessoas e organizações, paralelamente, e até mesmo concorrendo, discutindo ou tratando do assunto.

Considerando que esta trajetória de 2004 a 2010 foi bastante trabalhosa e, principalmente, que o impacto da Medicina Hospitalar agradaria toda e qualquer organização ou pessoa preocupada com eficiência e/ou custos na assistência a saúde, o que pode estar por vir?
  • Aproveitamento da idéia como [dysfunctional] business ou marketing apenas!
  • Indução consciente de confusão de conceitos! 
Medicina Hospitalar é um modelo com características bem peculiares e médico hospitalista não é qualquer médico que trabalhe em hospital. Não é meu objetivo aqui explicar o modelo, mas... Já se percebe muitos hospitais no Brasil divulgando que o adotaram, alguns sem se afastar um milímetro sequer do modelo tradicional. Estão anunciando que contrataram um médico “moderno”, que é sucesso nos States e altamente resolutivo. Há quem já queira ensinar. Organizações e pessoas que ainda necessitariam aprender, e o que é pior: divulgam como se existissem profissionais prontos para se tornar solução fácil de todos os problemas advindos da complexidade da assistência hospitalar de um dia para o outro. Ou que sabem como encontrá-los e/ou produzi-los. Como se instituições no Brasil, sejam hospitais, organizações de ensino ou empresas de consultoria, possuíssem agora uma fórmula simples para o gap de qualidade e o problema dos erros na assistência à saúde. Há cursos de pós-graduação prometendo fazer de você um excelente e bem sucedido hospitalista em 380 horas. Bobagem - quando feito desta forma.

Enquanto muitos lá onde cunharam o termo hospitalistas ainda assumem que há muito a melhorar no próprio modelo e no campo da segurança do paciente, alguns hospitais brasileiros têm anunciado que estão prontos: “temos hospitalistas”, “somos pioneiros”. Quando não anunciam serem os primeiros – vários deles juntos!!! E “temos segurança”, “temos qualidade”, dando a impressão de ser tudo irretocável, quando falam para o público externo (compreensível) e também nos fóruns de discussão que envolvem aqueles responsáveis de fato por construir um assistência melhor e mais segura (preocupante).

Para início de conversa, é preciso reconhecer que “Quality & Safety” é sinônimo de aperfeiçoamento CONTÍNUO. Que perfeição não existirá nunca – mas que a busca constante por ela é necessária. E que o que serve para uma instituição pode não servir para a outra (e isto vale para hospitalistas inclusive).

A partir destas premissas, penso que somente avançaremos em Medicina Hospitalar se, antes de qualquer coisa, a organização estiver disposta a modificar cultura e processos críticos. Será preciso o surgimento de mais destas e o fortalecimento da cultura nas que já existem. Em ambientes onde não pretendem mudar, não devemos sequer estimular a introdução do modelo, pelo risco de somente desgastá-lo. Resta óbvio, em minha opinião, que a Medicina Hospitalar tem que crescer de dentro para fora, sem negar a importância secundária de projetos e ações vindos de fora para dentro, como os próprios congressos que organizei.

Nos EUA, não saíram contratando “médicos modernos” e, pronto, resolvido. Não foi fácil a trajetória inicial do movimento que consagrou a Medicina Hospitalar como a especialidade médica que com mais rapidez cresceu na história da Medicina moderna. E vejo como particularmente empolgante a busca contínua por aperfeiçoamento que eles seguem ainda hoje empregando. Não partiram da contratação de hospitalistas. Modificaram o processo de assistência hospitalar. E moldaram, a partir disto, e muito paulatinamente, as pessoas nele envolvidas. Surgiu, então, o hospitalista. Como fruto, não como semente. E, a partir disto, é óbvio que se beneficiaram e se beneficiam por troca de experiências, através de consultorias e cursos, entre outras.

Imagine como seria bom se fossemos capazes de, através de em um passe de mágica, viabilizar ganho de qualidade e resolver a questão em torno dos erros médicos, contratando qualquer médico para ser hospitalista, em qualquer instituição. Médicos formados no modelo tradicional, sem nunca terem tido nada no currículo sobre segurança do paciente. Que recém acabaram a residência de Clínica Médica, ou até mesmo recém formados, lançados para serem os responsáveis por conquistas que alguns hospitais divulgam aos clientes antes mesmo de serem fato real, antes mesmo de trabalharem os alicerces do modelo. É possível assim? Dificuldades semelhantes enfrentou e enfrenta a Medicina de Emergência no Brasil. Estamos fazendo parecido com a Medicina Hospitalar, ou pior.

Fazem o mesmo quando tentam inserir profissionais como “hospitalistas”, e não estão preparados para modificar o modus operandi vigente. Pior quando os colocam para servir de retaguarda ao modelo tradicional, no formato “mid-level providers”.

Modelo tradicional é modelo tradicional, o de Medicina Hospitalar é o de Medicina Hospitalar. O último uma inovação em relação ao primeiro, o que por si só não significa superioridade. Deve haver quebra de paradigma para existir. Estaríamos abrindo mão daquele médico que dá as coordenadas estando, na maior parte do seu tempo, do lado de fora do hospital. Pelo menos como protagonista no ambiente hospitalar.

O que mais tenho visto aqui é pouco ou quase nada modificarem o modus operandi, ou fazê-lo de outra forma que não através do aproveitamento de nosso modelo. Há hospitais que passaram a chamar o plantão clínico que sempre tiveram de "equipe de hospitalistas". Há grupos incentivando a confusão com Sistemas de Resposta Rápida. Há também quem esteja fazendo apenas marketing por marketing. Interpretações e adaptações estão ocorrendo e sucitando debate [leia mais].

Aliás, marketing por marketing é estratégia que vem sendo bastante aplicada. Escutei recentemente a seguinte história: Há um hospital privado brasileiro que está na moda. Em quase toda discussão sobre qualidade assistencial estão presentes. Liderança deste hospital foi convidada para falar em evento em outro estado cujo tema central era Emergências. Não é o forte deles. No estado onde o evento foi realizado, há alguns hospitais que obtiveram resultados positivos através do Protocolo de Manchester. Ao invés de darem ênfase às experiências locais, alguém se lembrou de convidar representante do hospital da moda para apresentar o Protocolo. Imediatamente após aceitar o convite, a liderança do hospital da moda ligou para um conhecido gestor de emergências questionando: “que m... é este tal de Consenso de Manchester?”. Ao final, apresentou “excelente” palestra sobre Protocolo de Manchester, através de slides que eram do gestor de emergências. E não faltou no evento quem tenha pensado: “estas caras são muito bons mesmo”. Não aplicam!

Outra história interessante diz respeito ao formato que alguns vêm defendendo. Em um hospital onde isto acontece, após longo discurso de defesa do que estavam fazendo, o gestor médico questionou-me: “você realmente não acha isto bom?”. E era óbvio que estavam com iniciativas bacanas, apenas não eram através de hospitalistas. E pode até um hospital se sair melhor que outro que emprega a Medicina Hospitalar segundo a cartilha, em razão da complexidade do que estamos tratando. Múltiplos fatores interferem nos resultados. Apenas defendo que não se chame de Medicina Hospitalar o que não é. Mas voltando à história... Respondi que achei tudo muito legal, mas que apenas não identificava aquilo como Medicina Hospitalar e que me preocupava a satisfação profissional daqueles médicos que atuavam como “hospitalistas”. Minutos após, na sala de estar médico, em momento informal e de descontração, um cirurgião tratou os "hospitalistas" por "residentes que já sabiam o necessário". Outro médico se referiu a eles como “quem agora liga para nós ao invés da enfermeira”. E conversei mais tarde com uma hospitalista da instituição que quase chorou ao descrever seu descontentamento. Atendem intercorrências dos pacientes dos outros, não se sentem sequer membros de uma equipe e fazem muito, mas muito, trabalho burocrático.

Usar da Emergência como exemplo é muito interessante. Ou até mesmo da Medicina Intensiva. Vamos adiante...

Nestes dois cenários, têm se organizado grupos ou pessoas para explorar trabalho médico. Normal! Podem ser outros médicos a fazer isto inclusive. Colocam-se como intermediários entre o hospital e os profissionais da linha de frente. E forçam uma divisão ainda maior do bolo, muitas vezes errática - e isto pode ser um problema.

Enquanto isto, nas emergências Brasil afora, a regra é trabalharem médicos inexperientes, que não encontram nesta atividade uma carreira. Aqueles poucos que teriam gosto pela área vêem a empolgação ruir com o tempo, com a falta de profissionalização do setor e de valorização profissional. Não há costumeiramente aliança hospital - fonte pagadora - médicos. Os médicos da linha de frente, pelo menos, dela não fazem parte. E os outros dois players reconhecem os problemas advindos disto, mas não têm conseguido romper a zona de “conforto”. Conforto entre aspas, já que há uma forte crise e ela só cresce.

Quais são os riscos da Medicina Hospitalar no Brasil?

Servir de ferramenta para hospitais apenas, sem a necessária aliança com as fontes pagadoras e, principalmente, com os profissionais da linha de frente.

Sem suprir demandas dos profissionais da linha de frente, reproduziremos o que faz a Medicina de Emergência, impossibilitando fazer da atividade de hospitalista uma carreira médica.

Alternativas outras de aproximação das lógicas assistencial e administrativa já falharam por pretenderem a simples regulação da primeira pela segunda. No modelo de Medicina Hospitalar, o resultado deve brotar primariamente da assistência, e isto faz parte da grande e imprescindível mudança. Fazer isto no Brasil está complicado, adaptações estão surgindo, mas talvez não sejam boas para o médico. Percebe-se fácil que muitas instituições estão empregando “hospitalistas” para fazer o que mid-level providers estão fazendo nos EUA. Não é Medicina Hospitalar, mas igualmente é um movimento bem interessante. O risco é inserirmos médicos nesta atividade, criando uma categoria de segunda linha, de clínicos descontentes. Isto compromete minha perspectiva de que o movimento de Medicina Hospitalar no Brasil seja capaz, tal como está sendo nos EUA, de resgatar um espaço mais nobre de atuação para o médico generalista.

Não podemos fazer como SOBRAMH o mesmo que costuma fazer a maioria das especialidades médicas. Cabe aos sócios de associações médicas definirem o norte e exigirem melhorias e correta alocação de recursos. São eles próprios que permitem que suas lideranças passem a se ocupar principalmente de gerir lutas de poder, ao invés de melhor trabalhar interesses legítimos do movimento, fato comum em muitas associações. Mas, mesmo sendo necessário cuidar de nossa associação, os hospitalistas que efetivamente já existem devem perceber que o mais importante ambiente para despenderem tempo e energia nos próximos 2-3 anos será o seu próprio hospital. Será este o verdadeiro cenário de aprendizado e conquistas para o nosso movimento em curto prazo.

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