quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Frenectomia: Estamos Cortando Freios de Bebezinhos Desnecessariamente?

Começo esse texto deixando claro que não tenho nenhuma expertise na área, sequer em pediatria. E que não é objetivo da minha revisão e posteriores provocações esgotar o tema ou sentenciar sobre valor das intervenções questionadas - que sirvam para fomentar debates e que estes sejam, por favor, baseados em evidências. É este o objetivo maior da Choosing Wisely Brasil!

Curiosidade partiu da descrição de uma conversa entre dois otorrinolaringologistas. Um deles estava ainda festejando o nascimento da filha quando recebeu a notícia de que a criança havia pontuado mal em avaliação de "freio curto", sendo indicada frenectomia. Desconfortável com o diagnóstico e com o procedimento, solicitou avaliação de colega de confiança que atua em Otorrino Pediatria. O profissional orientou que esperassem sua avaliação. Plano era realização imediata, automática, do procedimento abaixo...


O Otorrino Pediatra chegou para avaliar no segundo dia de vida do bebê. No anterior, concomitante ao muito ágil diagnóstico, a criança apresentou dificuldades para amamentação. No D2, estava mamando bem. Foi globalmente avaliada sendo, após, momentaneamente contra-indicado o procedimento. Avaliações posteriores mantiveram a conduta conservadora e a criança apresentou um desenvolvimento normal. Era saudável!

Há marcos históricos dessa questão no Brasil:

Em junho de 2014, Lei 13.002 tornou obrigatória a realização do "Protocolo de Avaliação do Frênulo da Língua em Bebês", em todos os hospitais e maternidades brasileiros. Do ponto de vista de pensamento médico probabilístico e racional, intervenções dessa natureza, universais, raramente fazem sentido, muito menos diferenças clínicas relevantes sem consequências negativas não intencionais. 

Em manifestação pública, o político autor da lei escreveu nitidamente orgulhoso: "Pesquisas em todo o mundo têm comprovado a importância do diagnóstico e intervenção precoce dessa alteração. Com a aprovação dessa lei, o Brasil torna-se o primeiro país a oferecer esse teste em todas as maternidades, abrindo mais um campo de atuação para os profissionais da saúde e beneficiando a população". 

Foi além:

"Quanto mais cedo, melhor

É importante que seu bebê faça o exame o mais cedo possível... para que se descubra, com a maior antecedência, se tem língua presa, evitando dificuldades na amamentação, possível perda de peso e, principalmente, o desmame precoce. Seguir essas recomendações faz toda diferença para a amamentação e consequentemente para a boa saúde do seu filho".

Em 2018, Nota Técnica do Ministério da Saúde de número 35 visa orientar os estabelecimentos de saúde e seus profissionais sobre a Lei 13.002. Nela, começam definindo anquiloglossia (língua presa),  A PARTIR DE CRITÉRIOS PURAMENTE ANATÔMICOS, RECONHECIDAMENTE UM TERRENO FÉRTIL PARA SOBREDIAGNÓSTICOS.

Seguem com item 2, intitulado "Anquiloglossia e amamentação":

"A anquiloglossia tem sido apontada como um dos fatores que podem interferir negativamente na amamentação, diminuindo a habilidade do recém-nascido para fazer uma pega e sucção adequadas, dificultando o adequado estímulo à produção de leite e o esvaziamento da mama e causando dor nas mães durante a amamentação". Eles mesmo complementam: "Embora as evidências sobre a associação entre anquiloglossia e dificuldades na amamentação não sejam robustas, alguns testes têm sido propostos para facilitar a identificação de alterações no frênulo lingual que potencialmente podem interferir na mobilidade da língua".

Fui então atrás dessas evidências, de forma rápida, razão pela qual quem tiver adendos sinta-se estimulado a acrescentar ao debate: Não parecem existir evidências capazes de estabelecer causalidade forte e prevalente entre anquiloglossia, especialmente não extrema, e dificuldades persistentes na amamentação! Revisão de 2016 da Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health aponta:

"There is disagreement across specialties regarding whether a tongue-tie should be divided to facilitate breastfeeding, and under what circumstances. Ankyloglossia is not the only cause of breastfeeding issues, and in cases of comorbidities or alternative primary causes, frenectomy may not result in resolution. Un-split lingual frenulum may physically adapt (i.e., stretch with age) over time and breastfeeding quality may improve without intervention. The Canadian Paediatric Society has communicated that under most circumstances, tongue-tie is an incidental anatomical finding without significant consequences for the quality of breastfeeding, and that surgical intervention may not be warranted unless difficulty breastfeeding or other clinical concerns present themselves".

O Protocolo de Avaliação sugerido na Nota Técnica resulta de trabalho altamente elogiável cujos fins foram, única e exclusivamente, diagnósticos. Entretanto, sabemos de outras tantas situações em Medicina e Saúde que nenhum diagnóstico, por mais correto que seja, deve definir per si uma intervenção corretiva. São etapas distintas. Avaliações distintas. Toda intervenção corretiva deve ser, ela própria, especificamente testada: uma coisa é uma coisa, a outra coisa é outra coisa. E a forma de testar intervenções em saúde é, idealmente, através de ensaio clínicos randomizados.

Mas antes de avaliar o que existe de evidência de eficácia do procedimento em questão, percebamos como a mídia apresenta o assunto:


Uma busca rápida na internet encontra vasta propaganda do procedimento como eficaz, simples e seguro. Em muitas delas, é evidentemente promovido e banalizado. Aparentemente agrada mais Dentistas do que Otorrinos, sendo que os médicos muitas vezes possuem o convênio para o qual o pacientezinho está hospitalizado, enquanto os primeiros "precisam" fazer Particular. Após alta hospitalar, Cirurgiões-Dentistas têm, em média, mais facilidades para realização do procedimento em consultório do que Otorrinos.

Aos Fonoaudiólogos, a Lei gera uma reserva de mercado interessante. Mas, como em tantas outras situações parecidas da assistência hospitalar, não é assim que profissões deveriam se tornar indispensáveis - fonoaudiólogos são, ou deveriam ser, espontaneamente indispensáveis nos hospitais, devendo ser acessíveis para qualquer paciente certo no momento certo, não para qualquer paciente em todo e qualquer momento.

Há conflitos de interesse óbvios contidos nessa discussão!

ECR's e Revisões Sistemáticas sobre o tema:
Há poucos e pequenos ensaios clínicos. Como esperado nesse cenário, resultados para todos os lados. Alta probabilidade de falsos-positivos, seja pela situação de acasos secundários aos diminutos tamanhos, seja pela predominância de achados positivos altamente subjetivos. Em conclusão, não há evidências confirmatórias de eficácia, tal como conclui resumo da Cochrane posterior à Lei 13.002:

"Frenotomy reduced breastfeeding mothers' nipple pain in the short term. Investigators did not find a consistent positive effect on infant breastfeeding. Researchers reported no serious complications, but the total number of infants studied was small. The small number of trials along with methodological shortcomings limits the certainty of these findings. Further randomised controlled trials of high methodological quality are necessary to determine the effects of frenotomy".

E segurança de frenectomia? Bom, idealmente não deveríamos discutir segurança onde não há comprovação de eficácia. Se no procedimento em questão não é muito difícil concluir por se tratar de procedimento com baixo potencial de complicações, segue a regra universal de que sempre ocorrem (entre as sempre raras regras universais):

A regra das consequências negativas não intencionais é das poucas coisas que para as quais podemos e devemos ter certeza na Vida.


De volta ao caso que motivou a discussão:
Só se interessa pelo desfecho de redução de dor mamária mãe que por ventura tenha dor mamária! A nossa não apresentava! Automatismos em saúde são perigosos, não bastando boas intenções. Assim como se interessa pelo desfecho de melhora na amamentação quem apresenta dificuldades sustentadas na amamentação!

Deve a Frenectomia se transformar em mais um caso de #MedicalReversal????? Relativo, com certeza! Para saber a resposta mais amplamente, ao invés de Leis e Notas Técnicas com risco de serem apenas bem intencionadas, e ao invés de evidentes lobbies de corporações, quem sabe uma verdadeira união de profissionais da saúde e políticos (sociedade), com foco exclusivamente nos pacientes, em prol de uma evidência científica com capacidade confirmatória? A Nota Técnica de 2018 falava em "treinamentos de aplicação do protocolo mediante aplicação de filmagens". Houve custo disto? Qual foi? Poderia ter ajudado na viabilização de ensaio clínico randomizado apropriado?????

Para concluir, deixo provocação às Sociedades de Otorrinolaringologia e Pediatra: quem sabe abordar isto numa Lista de Recomendações Choosing Wisely Brasil?

2 comentários:

  1. Excelente texto!!
    Sou Odontopediatra e concordo que estamos diante de um problema sério de sobrediagnóstico com consequentes intervenções desnecessárias.
    Já há algum tempo, venho batendo nessa tecla.
    Obg!!
    https://adrianaliraortega.com/2016/09/25/teste-da-linguinha-ate-que-ponto-e-confiavel/

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  2. Professor, seria muito interessante ver um bate papo seu com Vinay Prassad! Talves na forma de podcast quem sabe?

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